A Carta

Esta história é inspirada na infeliz história de vida que nos foi contada a mim e ao meu irmão Miguel em noite de Feiras Novas, no Largo da Havaneza, por um velhinho que dançava o Vira magistralmente, quase sem se mexer… Quase analfabeto, quando trabalhava no Brasil, tinha enviado uma carta à namorada – que perdeu para outro rapaz – mal e insuficientemente endereçada que quase deu a volta ao mundo até ser entregue, tarde demais para todos.
Tudo o resto é invenção minha. Espero que gostem e que me desculpem ser tão longa.

A Carta

Conheciam-se os dois desde sempre. Eram da mesma criação. A Mãe da Leonor tinha mesmo chegado a amamentar o Miguel, porque o leite da D. Jacinta, era fraco e a criança em vez de medrar como a Leonor, definhava a olhos vistos. E não parava de chorar, de fome, decerto… até ao dia em que a Mercedes, perdendo a cerimónia, pega na criança ao colo e dá-lhe o peito que tinha livre enquanto a Leonor mamava no outro. Só assim o Miguel se calou, só assim ele ficou saciado. A partir daí, deu gosto ver o miúdo a crescer dia para dia, a ganhar cores, vitalidade, e até o sono dele era mais descansado! Mercedes, que tinha leite para dar e vender, amamentou os dois até chegar a altura do desmame.
Como eram vizinhos, casa encostada uma à outra, continuaram a estar sempre juntos. Habituaram-se a pensar que eram da mesma família, como irmãos. Cresceram juntos, brincaram juntos, frequentaram a Escola Primária juntos, trabalhavam nos campos juntos e tratavam da bicharada juntos. As duas únicas coisas que não faziam juntos eram as armadilhas para os pássaros, ratos, raposas e cobras de que o Miguel era especialista a fazer – e que a Leonor desprezava com todas as suas forças – e as lições de bordados e tecelagem que a rapariga atendia todas as terças-feiras da parte da tarde, na casa da Professora Rosinha.
Saíram os dois da Escola quando fizeram 11 anos. A Leonor ficou na lide doméstica da casa, e tinha os seus quatro irmãos mais novos de 7, 6, 4 e 2 anos a seu cargo. A Mãe trabalhava de sol a sol na Quinta da Boa Viagem que pertencia aos Senhores lá da terra. O Pai da Leonor, já há um ano acamado, dependia também dos cuidados desta sua filha mais velha. Trabalhara nuns moínhos de água, as Azenhas, e um dia, tinha ficado embrulhado no engenho hidráulico que fazia subir a roda da água do moinho. Desde aí nunca mais conseguiu trabalhar e à medida que o tempo passava, mais entrevado ficava.
A vida da Leonor, para olhos estrangeiros, não era nada fácil, mas para ela, que nunca conheceu outra, tinha o seu encanto. Gostava de tratar dos irmãos pequenos e não podia ser mais carinhosa com o Pai: sempre atenta, sempre paciente, sempre dócil , sem dar importância a algum dito mais brusco e, quem presenciasse esta dedicação e desvelo que Leonor tinha com o Pai, ficava comovido, pois não era conhecido na região outro caso igual!
Leonor cozinhava, lavava, esfregava o soalho e tratava dos seus irmãos. Ainda conseguia tempo para ir mondar ervas para a horta, pois o resto era o Miguel que lhe fazia. Ele tratava da horta da Mãe dele e da horta da Leonor. Nada lhes faltava de legumes e frutas em casa. Até sobejava para dar aos animais e a quem mais precisasse.
O Miguel, saiu da Escola e foi trabalhar para o João Padeiro da aldeia do Souto, a uns 12 quilómetros a montante do rio, no sopé da Serra d’Arga. Foi como aprendiz, tinha comida, cama e roupa lavada. Recebia também a Mãe dele pão em casa, por conta do negócio que tinha feito com o Padeiro para ensinar a profissão ao filho. Todos os Domingos, ao amanhecer, levantava-se o Miguel para ir a casa passar o dia. Havia dias que o seu Mestre até o deixava levar a mula, mas normalmente fazia o caminho a pé. E ía de coração feliz: ajudava a Mãe no que fosse preciso, tratava-lhe da horta e arranjava as cortes dos animais que carecessem de acertos, e ainda da parte da manhã ia à Missa na pequenina Igreja da Aldeia. E era lá que se encontrava com a Leonor. Quanto mais os anos passavam, parece que menos conseguiam estar e falar um com o outro. Havia entre eles uma espécie de timidez que lhes era estranha. Leonor tinha crescido, estava muito bonita. O seu cabelo castanho, apanhado dentro de um véu, emoldurava-lhe a cara formosa de onde sobressaíam uns olhos fulgurantes de um castanho cor de mel. Tinha as sobrancelhas bem desenhadas, escuras. A sua boca e o nariz eram equilibrados e perfeitos nessa sua cara de rapariga minhota. Miguel, agora com os seus 16 anos, tinha-se transformado num bonito rapaz, robusto, ombros largos, pescoço estreito, e a sua cara inconscientemente máscula e sempre de barba desfeita apresentava um bronzeado saudável. Os seus olhos azuis eram escuros, profundos, como quem tudo consegue observar. E quem esses seus olhos mais gostavam de observar era a Leonor.
Miguel não se cansava de a olhar, parecia-lhe sempre que ainda estava mais bonita desde o último Domingo…
Esperava, ansioso, pela hora da tarde de Domingo, onde Leonor vinha ter com ele para falarem sobre o que tinha de ser feito na horta.
Mas a conversa começou a ser outra, falavam deles, das saudades que tinham um do outro e ao princípio confessavam-se mutuamente sentimentos novos e muito perturbadores que sentiam um pelo outro. Passados meia dúzia de Domingos, já não conseguiam não se tocarem, não se abraçarem, não se embalarem na má lembrança da separação por mais uma longa semana. A conversa dos dois fluía naturalmente, as suas ideias e convicções ora se completavam ora se contradiziam de uma maneira saudável e respeitadora. Os dois pareciam terem sido feitos um para o outro.
Leonor só pensava no Miguel, desde que acordava até se deitar. Miguel só pensava na Leonor desde que acordava até se deitar. Ninguém sabia deste namoro clandestino, ninguém podia saber. Eram tempos em que tudo tinha que ser às escondidas…
Parecia que dançavam uma dança interminável os dois, ora rodopiavam juntos, felizes… ora se separavam por uns instantes, que lhes sabiam a eternidade, para logo voltarem a rodopiar, bem encostados, o seu bailado do amor. Os seus corações rejubilavam quando estavam juntos, e apertavam-se até doerem quando se sentiam separados pela vida. Os Domingos eram suspirados e desejados no meio das lembranças do último. Era um dia que trazia promessas e palavras doces. As mãos eram sôfregas de se agarrarem nesta dança que era só deles, a dança dos seus Domingos!
Mas a pobreza reinava na vida deles os dois. Nunca conseguiriam ter uma casinha com um pedaço de terreno só para eles para puderem construir a vida e criarem família, a deles.
Miguel tinha um Tio emigrado na Venezuela. De vez em quando ele escrevia à sua Mãe e dizia maravilhas do país onde vivia. “Que devias mandar o rapaz para cá. Ele iria conseguir fazer fortuna aqui…. eu olhava por ele, que não te preocupasses que eu não o deixava entrar na má vida, se ele quiser, eu mando-lhe o bilhete para o Paquete, aquele que parte de Lisboa de três em três semanas, etc., etc..”
E a ideia de Miguel ir para a Venezuela foi ganhando forma na cabeça da D. Jacinta, na cabeça de Miguel e, mais relutantemente, na cabeça de Leonor.
-“E o que iria ser deles? Podiam nunca mais se verem!” – dizia aflita, Leonor.
-“Leonor, em primeiro lugar eu só vou se tu estiveres de acordo. Temos que conversar sobre isto. O que eu queria era fazer a minha vida lá ficar estável, e ao fim de uns cinco anos mandar-te vir ter comigo.
Ou então, caso não seja isso possível, eu voltar para cá, casarmos e com o dinheiro que eu trouxesse, começaríamos a nossa vida juntos da melhor maneira, desafogados financeiramente. Pensa nisso minha querida Leonor. De uma maneira ou de outra, nós pertencemos os dois um ao outro, juntos!”
E Leonor pensou nisso, oh se pensou! Não fazia outra coisa desde que acordava. Entretanto, ía bordando um lenço para o pescoço do seu Miguel. O seu lenço tinha pássaros, tinha versos sobre o amor deles, e tinha um navio grande com uma chaminé a deitar muito fumo. Era enfeitado, em todos os pedaços livres, de flores e folhas bonitas, folhas vermelhas como as há no Outono… como o Miguel gosta delas! E as flores, eram camélias, as preferidas de Leonor. O Miguel haveria de gostar de olhar para o lenço, bordado por ela, quando sentisse saudades…
A razão da Leonor já bem sabia o que o seu coração fingia não perceber: o Miguel iria para a Venezuela e ela ficaria à espera que ele a mandasse ir ter com ele.
E assim aconteceu. Passados menos de dois meses, Miguel embarcou no Paquete rumo à Venezuela. As promessas feitas foram infindáveis, à Mãe, aos amigos, à família. Mas a principal e a única que mais lhe importava era a que tinha feito a Leonor: logo que pudesse, mandava-a chamar para ao pé de si.
E ficaram assim dois corações inexoravelmente separados, quando pertenciam ao mesmo ar que respiravam, ao mesmo sol que os tisnava, à mesma chuva que os molhava, ao mesmo tempo que passava, à mesma corrente afectiva, à mesma fórmula química!
E os anos foram correndo, uns atrás dos outros. E não havia notícias de Miguel.
O Tio que o acolheu quando ele lá chegou, tinha sofrido pouco tempo depois uma síncope – diziam que era por ter o sangue muito grosso – fulminante à mesa de jantar, enquanto saboreava um belo arroz de cabidela. Os gatos pingados da funerária ainda tiveram que lhe tirar do dito arroz, do nariz e das orelhas, pois tinha morrido de cara enfiada na terrina de o servir…
Herdou o Miguel o negócio dele, uma Padaria com sucesso e bem lançada.
Mas nada disto se sabia lá em Meixelo, Ponte de Lima.
E os anos continuaram a passar… Leonor, vivia inconsolável. O seu desgosto era imenso e a dor que sentia não era imaginação, era mesmo física. Vivia com a angústia permanente de pensar que nunca mais ia ver o seu Miguel, que nunca mais ía ouvir a sua voz. E com as certezas que os apaixonados têm, até prova em contrário dos seus amados, sabia que Miguel já tinha outra mulher, se calhar até filhos dela também. Miguel tinha-a esquecido. Como tinha sido isso possível? O seu coração ainda sabia de cor todas as palavras e promessas que Miguel lhe tinha dito e feito. Miguel sabia muito bem como ela ficaria, se por ele fosse deixada. Que crueldade era essa que nunca lha tinha conhecido, que o impedia de lhe explicar, respeitosamente, porque não a queria mais? Sem uma palavra, sem uma justificação, com uma montanha de egoísmo, o seu Miguel tinha-a esquecido, para sempre…
Leonor trazia dentro de si a fatalidade das pessoas que amam e não são amadas. Leonor tinha perdido o alento de viver. Tudo se lhe dava, como não se lhe dava. Tudo passou a não ter importância para ela. Desinteressou-se pelas poucas distracções que antes ainda puxavam por ela. Deixou de ir aos Bailes, não queria nem dançar nem sequer ouvir as concertinas a tocarem o Vira. Isso agora era um suplício para ela. Fazia-a lembrar-se dos Viras que dançava com Miguel, pela noite fora, até caírem para o lado, estoirados vermelhos e felizes! Não havia quem dançasse o Vira melhor do que eles os dois!
Leonor, quando festejou os seus 26 anos, decidiu aceitar a proposta de casamento que o Ernesto lhe fazia, a bom ritmo, já há uns anos. Que lhe importava que não gostasse dele? Ele gostava dela, era bom rapaz e o seu negócio de Madeireiro estava a correr-lhe bem. A Mãe, a D. Mercedes, já viúva, dizia-lhe:
-“Leonor, estranho essa tua mania de não quereres casar… o teu Pai havia de gostar saber-te casada com o Ernesto. Os teus irmãos já estão orientados, já não precisam de ti, e olha que já não vais para nova, rapariga!”
E Leonor casou com o Ernesto, o feliz Ernesto que finalmente tinha casado com a rapariga mais bonita da sua aldeia e arredores.
Tiraram uma fotografia à porta da Igreja, como era da Praxe. Era visível, para quem se dispusesse a ser mais observador – pois que até para isso é preciso ter vontade – a tristeza nos olhos da noiva que contrastavam com os olhos alegres e risonhos do noivo todo aperaltado no seu fato de Domingo. Leonor envergava o vestido de noiva de sua Mãe, preto, com aplicações em veludo e bordado a vidrilhos pretos e prateados, lenço de renda branco na cabeça, à boa moda Minhota. O seu peito estava coberto com o pouco ouro da família e com o dos amigos e vizinhos que, como era usual nessa época, o emprestavam para estas ocasiões.
Passaram uns anos, e Leonor ainda não tinha sido Mãe. Não falava sobre isso e não permitia que ninguém se intrometesse no assunto. Ernesto, também pouco parecia importar-se com isso. Do que ele gostava verdadeiramente era do pequeno Império Madeireiro que tinha construído. Cada vez mais era ostensiva a sua riqueza: nas suas casas cada vez maiores, nas propriedades agrícolas e nas benfeitorias oferecidas à aldeia.
Mas Leonor, continuava com a sua alma triste. O seu coração já não apertava, já não andava angustiado, nem sequer tinha a certeza se o seu coração ainda existia… porque não o sentia! Pode-se perder o coração? Se calhar podia, de repente tinha acontecido isso: perdeu o coração, morreu-lhe dentro do peito!
E os anos continuaram a passar, sem dó nem piedade.
No dia em que fazia quarenta anos que Miguel tinha partido para Lisboa apanhar o Paquete que o levou à Venezuela, era um Domingo.
Leonor estava na Igreja, ainda antes da Missa começar, sentada no lugar que sempre tinha ocupado. E como sempre, estava sozinha, pois o Ernesto “não era dessas coisas de Padrecos e Missas” – como ele próprio dizia.
E sentado também no mesmo sítio onde se costumava sentar, quarenta anos antes, estava o Miguel! Ninguém o conheceu, Miguel estava muito diferente. Nem a própria Leonor que passou os olhos pela sua figura o reconheceu, estava preocupadíssima com o bater do seu coração que, desde que tinha entrado na Igreja, lhe parecia que queria sair-lhe pela boca. O que seria isto? Será que ía ter um ataque cardíaco? Tentou respirar fundo e calmamente, levou a sua mão direita ao coração e pressionou o peito, como quem quer estancar uma dor ou uma forte impressão.
-“Oh meu Deus! O que é isto?”
E Leonor começou a sentir-se observada, sentia como que se tivesse facas ao seu peito direccionadas, que a sufocavam, que a espetavam sem fazerem doer, mas que a faziam perder o fôlego. “Ajuda-me Minha Nossa Senhora da Guia! Dai-me a Tua mão para eu suportar isto que não sei que seja!”
E foi quando a imagem do desconhecido que tinha visto antes, sentado no lugar que o Miguel sempre outrora ocupava, lhe veio de novo à cabeça… aquela cara, aquele perfil!
E só então os seus olhos reconheceram o que o seu coração já tinha reconhecido, mesmo antes de entrar na Igreja: o Miguel! Meu Deus! Minha Nossa Senhora da Guia! O meu Miguel voltou… o que faço agora? E o seu pobre coração quase desfalecia, quase morria de susto.
Assistiu heroicamente a toda a Missa e mal a Benção foi dada, levantou-se apressadamente e saiu da Igreja. Houve quem ficasse admirado, normalmente Leonor era das últimas a sair, hoje devia estar apressada…

Miguel ainda não estava recomposto. Ver a Leonor tinha-lhe alvoraçado as entranhas de tal maneira que sabia não conseguir ficar de pé tão cedo. Deixou-se estar sentado, até a Igreja ficar vazia.
A Leonor, apesar dos anos passados ainda estava bonita. Os olhos ainda eram um espanto, apesar de terem perdido brilho. O seu cabelo escuro, já com muitas brancas, ainda era um bonito cabelo. Ainda pedia festas para o compor, como dantes o fazia…. tantas e tantas saudades que Miguel tinha de quando Leonor lhe pertencia, quando os dois eram um só! Não percebia como tinha tudo terminado, sem uma explicação, sem uma palavra que o ajudasse a compreender! Nunca se tinha conformado, e nunca tinha cedido a mais nenhuma tentação. A única mulher que queria, que sempre quis, era a Leonor.
Nunca foi homem de amar à toa. Nunca houve mulher que o cativasse lá pela Venezuela, o país onde não faltavam mulheres bonitas e interessantes. Quando percebeu finalmente que Leonor não viria ter com ele, sentindo-se desprezado, passou a dedicar-se exclusivamente ao trabalho. Fez o que os homens conseguem fazer bem: desligou para sempre o botão “Leonor”…
Para sempre, ou antes, até há um mês atrás, quando recebeu uma carta de um Advogado em Ponte de Lima que lhe dizia ter assuntos do seu interesse a resolver em Portugal, mais precisamente a casa da Mãe, que tinha morrido já há mais de vinte anos.
Miguel, achou que já era tempo de enfrentar o passado, fazer as pazes com ele.
Sabia do casamento da Leonor, porque encontrou na Venezuela o Padre, Missionário nessa altura, que a tinha casado. A notícia foi-lhe contada no meio de centenas de outras que o Padre achou interessar ao Miguel, pois eram sobre a sua aldeia Natal.
Só não sabia porque ela tinha deixado de gostar dele, porque não tinha ido ter com ele, como lhe tinha prometido.
Miguel, já mais apaziguado, saiu da Igreja e dirigiu-se à sua antiga casa. Já não se lembrava como era tão pequenina… igual à casa que tinha sido da Leonor. Miguel, através desse tal Advogado, tinha adquirido esta casa também, sem ninguém saber quem era o novo dono. Mantinha as duas casas com as traças originais mas deu instruções para não ser descurada a manutenção de ambas. Meteu a chave na fechadura da que tinha sido a sua casa, deambulou pela pequena casa, visitou o seu pequenino quarto que ficava de paredes meias com a cozinha, exactamente onde ficava encostado o fogão de lenha… por isso nunca passava frio no Inverno, mas durante o Verão, não aguentando o calor, acabava por ir dormir para o alpendre. Sorriu a pensar nisso, que miúdo pequeno era então!
Ganhou então coragem e entrou na casa vizinha, a que tinha sido da Leonor. Tudo estava no mesmo sítio, Miguel lembrava-se bem de tudo. No quarto que a Leonor dividia com os irmãos, ainda lá estavam as três camas: uma maior e duas mais pequenas onde dormiam aos pares os irmãos da Leonor. Miguel sentou-se na cama dela, afagou-lhe o colchão de folhelho e tentou imaginar Leonor ali estendida. Mas nem sentia o seu cheiro, não lhe sentia a presença, era inútil estar a evocar estes disparates. Levantou-se rapidamente, fazendo um gesto com a mão como quem quer enxotar uma mosca, ou então um pensamento e saiu daquele quarto. Já com a porta da rua aberta para sair, reparou num monte de correspondência ainda por abrir, arrumadinha numa mesa que estava ao pé da porta. Por curiosidade folheou os envelopes, que eram todos destinados a um tal Armando Cortez, um homem que tinha alugado a casa depois da Mãe da Leonor ter morrido.
Mas havia um envelope diferente dos outros, mais velho, mais amassado, mais colorido e também ainda por abrir…
Miguel ficou branco, o seu coração momentaneamente deixou de bater, e um aperto imenso no peito, qual tenaz implacável, provocou-lhe uma dor insuportável: era o seu envelope! A carta que tinha enviado à Leonor, cinco anos depois de ter chegado à Venezuela, com um bilhete de barco e dinheiro suficiente para ela preparar a sua ida e ainda uma ordem de pagamento de um Banco em Viana do Castelo para deixar a sua Mãe e os seus irmãos com bons recursos financeiros.
O envelope estava com muitos riscos e carimbos. Miguel tinha escrito bem o endereço, em Ponte de Lima, mas tinha-se esquecido de por o país: Portugal. A carta tinha andado pelo mundo fora e percebia-se que por três vezes tinha ido parar a Lima, no Perú, pelos riscos e sarrabiscos que o envelope apresentava. Muitos anos depois, tinha chegado ao seu destino, alguém mais eficiente tinha decidido encontrar o país ao qual pertencia Ponte de Lima, e tinha-o conseguido, mas uns 20 anos depois de a carta ter sido expedida pelo Miguel. Demasiado tarde para os dois.
-“A Leonor nunca tinha recebido a carta dele!”
Oh meu Deus! Porquê? Porque teve que acontecer isso connosco? Quais são os teus desígnios, meu Deus? Que querias que eu Te desse em troca para ter ficado com a Leonor? Meu Deus! Ajuda-me, ampara-me e faz-me compreender porquê , não me deixes perder a minha fé em Ti!
E Miguel, tombado no chão, perdeu os sentidos tamanha era a dor que tinha no peito.
Mas os desígnios de Deus, os tais que Miguel questionava há pouco, guiaram os passos de Leonor para a sua antiga casa. Tinha sentido uma necessidade imperiosa de a voltar a ver, de tornar a sentir-se a Leonor que tinha sido antes, talvez para que conseguisse digerir melhor esta aparição de Miguel de novo na sua vida.
Viu Miguel estendido no chão, à soleira da sua antiga casa. Viu o seu Miguel morto! Viu a sua vida a começar a acabar, nesse instante.
-“Miguel! Miguel, tu que te aconteceu? Não morras, não me acabes de matar!
E abraçada a ele, Leonor chorou por ele, chorou por si e chorou por nada ser capaz de mudar. Agora é que não lhe restava mesmo nada…
Mas o Miguel deu acordo de si, e viu-se nos braços de Leonor. Ainda tinha na mão o seu envelope por abrir. Sem uma palavra, ergueu-se do chão, puxou Leonor para cima e entregou-lhe o envelope velho, amassado, cheio de rabiscos e carimbos.
Leonor interrogou-o com o olhar, o que era aquilo? Pareciam perguntar os seus olhos.
-“Abre e lê o que aí está escrito, Leonor- depois já me posso ir embora com a minha alma mais apaziguada. Compreendo agora o que nos aconteceu.
Leonor abriu cuidadosamente o envelope, tirou de lá seis notas antigas de valor nominal grande, uma ordem de pagamento em nome da sua Mãe, uma fotografia e uma folha manuscrita, do Miguel. Ele explicava-lhe, feliz, como tudo lhe estava a correr bem e que finalmente estava preparado para a mandar ir ter com ele. Dizia-lhe até que tinha comprado uma casinha para eles viverem, com terreno e árvores de fruto. Vinha junto uma fotografia a preto e branco dessa casinha deles, com um Miguel ainda novo e sorridente, com o lenço bordado por ela ao pescoço. à frente da porta principal. Trazia também um bilhete, só de ida, para o Paquete que saía de Lisboa dois meses depois. Miguel pedia para Leonor o avisar de qual seria a sua decisão, ficaria à espera de uma carta dela na volta do correio. Quanto mais não fosse para lhe dizer que não queria ir para a Venezuela mas que ainda gostava dele e queria que ele voltasse para Portugal.

Leonor tinha as lágrimas a caírem-lhe silenciosamente pela cara abaixo. Não conseguiu dizer nada, tinha tanta, mas tanta coisa para dizer e nada lhe saia da boca. Silêncio total. Mas Miguel sabia o que os seus olhos diziam. Faziam a mesma pergunta: “porquê? Porque nos aconteceu isto a nós?”

E abraçaram-se, num abraço de consolo, de resignação. Já nada havia a fazer, tudo isto, esta descoberta, tinha sido tarde demais para os dois.

E eis que chega o Advogado, o tal de Ponte de Lima que escreveu ao Miguel a pedir-lhe que viesse tratar das suas casas.
Estende a mão a Miguel e acena a Leonor respeitosamente com a cabeça.
-“Boa tarde, prazer em conhece-lo pessoalmente! Mas o que é isto? ” – e apanhou o bilhete do Paquete que Leonor tinha deixado escapar das suas mãos. “Mas isto é um bilhete de barco muito antigo… que engraçado! E já tem mais de quarenta anos… Mas espera lá, deixem-me ver melhor o nome do navio e a data…… Exactamente! Mas isto deve valer uma pequena fortuna! O barco é o S. Cristoval que se afundou numa viagem de Lisboa para Caracas, e este é um bilhete dessa fatídica última viagem. Não houve sobreviventes! Mas onde é que arranjaram esta preciosidade??”

Miguel e Leonor, entreolharam-se e finalmente tiveram a resposta de que tanto precisavam. Foram os desígnios de Deus…

Fim

Post Fim: aposto que está tudo a pensar que agora o Ernesto podia morrer, não estão?
Isto é uma história, por isso faço o que me apetecer. E mato o Ernesto logo no dia a seguir. E sem estes dois terem culpa nenhuma, pois até tinham decidido que, por causa de precisamente respeitar o Ernesto, nunca mais se voltariam a ver.
Mas o Ernesto, que adorava cogumelos, distraiu-se e comeu meia dúzia de uns altamente venenosos… daqueles vermelhos com pintinhas brancas… não deu por nada, já estava quase sem dar acordo, com uma tremenda bebedeira que tinha apanhado antes de comer os venenosos…

Publicado por cristina sottomayor

Tudo o que eu escrevo aqui é um misto de vivências minhas e pura ficção. Mas mesmo na ficção, não consigo deixar de ser inspirada por momentos bons ou maus que vivi ou vi acontecerem à minha volta.

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2 comentários

  1. Como gostei de ler esta “carta”
    Um sonho de um amor mas com um fim triste, que nem pesadelo!…
    Parabéns
    1 bj
    Nuno

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