Passou-se isto num final de tarde de Verão. Estava em Campanhã a fazer horas para apanhar o meu comboio que me levaria a Caíde onde eu tinha deixado o meu carro pela manhã.
Toda a estação estava travestida de final de dia: as pessoas tinham um ar cansado, traziam sacos de compras, embrulhos e malas. Vinham com um ar acalorado, já um pouco desgrenhadas, mal cheirosas e impacientes por chegarem a casa. Via-se uma Mãe com uma criança de tenra idade adormecida no colo, com outra um pouco mais velha pela mão. Ainda conseguia segurar três sacos cheios de compras de Supermercado e a mochila do filho mais velho que saltitava ao seu redor ao pé-coxinho tentando não pisar os riscos do passeio…
Já tinha visto muitas vezes esta família da Mãe e dos seus três filhos. Percebi que ela vivia em Paredes, trabalhava no Porto e que todos os dias vinha com os seus filhos deixa-los nas suas escolas e Infantários e o sentido inverso rumo a casa ao final do dia. Ainda arranjava espaço para fazer as compras no Supermercado.. o chamado sexo-fraco!
Dois velhinhos se destacavam na multidão por estarem carinhosamente de mãos dadas. Já os conhecia. Foi coisa que sempre me comoveu: um casal e em completa união. Ele caminhava sempre um pouco mais adiantado do que ela. Desviava-se das pessoas e puxava a mulher delicadamente atrás de si. Saíam sempre os dois em Valongo, pelo menos nos dias em que eu os encontrava. Ela tinha um ar bem mais frágil do que ele. Lembro-me de vários episódios onde isso sobressaía, tal como aquele dia em que ele, com a ponta de um lenço de pano, dos antigos e verdadeiros, lhe ía limpando – à sua mulher – os olhos que não paravam de lacrimejar. A sua mão já toda encarquilhada, cheia de artroses e cicatrizes de quem toda a vida trabalhou no campo, conseguia ser tão ou mais delicada do que qualquer outra mão preparada e paga para agradar. Que comovente era ver o desvelo com que o velhinho tratava da sua mulher… E que doce era a expressão dela que se submetia aos seus tratamentos!
Um dia, a meio da viagem, o marido descobriu que a mulher tinha a blusa mal apertada com os botões todos em casas desencontradas. Cuidadosamente ele desapertou e tornou a apertar os botões nas casas certas e no final ainda lhe endireitou a gola e lhe fez uma festinha no cabelo…
Numa outra vez foi a mulher que tirou de um saco que trazia a tiracolo, um pente de plástico, já sem alguns dentes, e diz ao marido: “- Chega-te aqui! Estás todo despenteado, homem!” E o homem dela inclinou a cabeça e deixou-se pentear por ela… Para onde íam eles? Para uma consulta no Hospital…
Viam-se casais de namorados, grupos de adolescentes sempre ruidosos e alegres, viam-se dezenas de pessoas agarradas aos ecrâs dos seus telemóveis ou com os auriculares postos a darem-lhes aquela expressão de indiferença de “estou aqui mas não te estou a ouvir”..
Os comboios não paravam de passar, variando as linhas e os destinos. Os respectivos anúncios nos alti-falantes sobrepunham-se a qualquer ruído que a multidão fizesse. E ainda fazia calor…
Um dos casais de namorados começou a agitar-se. Ele segurava-a como se não a quisesse deixar ir embora e ela tentava separar-se dele dando uns sacões brutos aos seus braços. O que ela queria era apanhar um comboio anunciado para a linha nr. 1 e que estava quase a chegar. Mas ele tentava convencê-la a ficar com ele. O que parecia um pequeno arrufo de namorados começou a ganhar proporções de uma disputa ou discussão.
“Larga-me!” – dizia ela.
“Não te largo coisa nenhuma, tu vais ficar aqui comigo, Ana! Não te deixo ir!” – respondia-lhe ele.
O tom das suas vozes já tinham chamado a atenção dos que os rodeavam: estava toda a gente a olhar para eles.
“-Ana, eu não vou permitir que te afastes assim de mim! Não foi isso o que tu me prometeste! Eu amo-te e quero tomar conta de ti!”
“- Já te disse para me largares! Estás-me a magoar…” – choramingava ela.
Chegou o comboio e abriram-se as portas para os passageiros entrarem.
A rapariga começa numa berraria, a esbracejar e a pontapear o namorado nas pernas:
“- Seu anormal! Larga-me que já não te suporto mais! Eu sou dona da minha vida, não tens nada que decidir o que eu faço! Estou cansada que mandes em mim, ouviste? Ouviste bem?? ”
O rapaz, enquanto se defendia dos golpes que ela lhe dava, tentava a todo o custo impedir que a rapariga entrasse no comboio.
A algazarra e a berraria era tanta que apareceram dois seguranças a saber o que se estava a passar. Foram de imediato informados pela populaça que o rapaz estava a tratar mal a namorada. Queria bater-lhe e não a deixava entrar no comboio como ela queria. “- Ela é vítima de violência doméstica, está-se mesmo a ver!” – exclamou uma senhoreca toda bem-posta, baton mate vermelho nos beiços, em cima duns tacões de umas sandálias super-na-moda!
“- Eu já tinha reparado que ele era mau para ela… – respondeu-lhe uma outra – mas até estava a ver como é que isto ía acabar, coitadinha dela, tão novinha ainda, tão bonita e já metida com um estupor destes! Abusador, é o que ele é! Agarrem-no, não o deixem ficar com ela!”
Os seguranças, já com a ajuda de alguns populares masculinos, conseguiram finalmente separar os dois, meter a rapariga no comboio e reter o rapaz bem preso no meio deles até o comboio arrancar, irremediavelmente…
O rapaz chorava, “- Não faças isso, Ana! Por favor, fica comigo! Ana, não vás! Eu amo-te”
Não desviou uma única vez o olhar da rapariga. Apesar de estar a ser agarrado e puxado por tantos, ele não tirava os olhos dela! A expressão era de quem procura alguma justificação, alguma desfeita de um mal-entendido, um volte-face inesperado que trouxesse a Ana para os seus braços… Mas o comboio arrancou e nada disso aconteceu. O rapaz ficou no maior desalento, sentou-se no mesmo banco onde eu estava sentada e, tapando a cara com as duas mãos, desatou num pranto pegado. Indiferente à pouca piedade dos que o julgavam um opressor, um violento namorado. Ainda se ouviam uns murmúrios que diziam: “-É bem feito! É para ele aprender que não se trata mal uma mulher!”
Mas eu tinha visto uma coisa que não batia certo, que não encaixava neste cenário de presumível violência: a expressão do olhar da rapariga antes de as portas se fecharem completamente. Não era de medo, não era de cansada, não era de alívio por já estar em segurança… era uma expressão de troça, de pessoa vitoriosa, de pessoa que conseguiu o que planeou antecipadamente conseguir. Foi fugaz essa expressão e sempre acompanhada com a linguagem corporal de vítima assustada. Mas demorou o tempo suficiente para eu reparar nela.
E fiquei imensamente curiosa.
Passou um tempo, e o rapaz ia-se acalmando a pouco e pouco. Passou o meu comboio e eu nem sequer me levantei. Passaram centenas de pessoas por nós e deixaram de ligar ao rapaz.
“- Então, já está melhor?” – perguntei eu.
Levantaram-se uns maravilhosos olhos azuis para mim, espantados e ainda avermelhados por causa do choro.
” – Estou melhor, sim minha Senhora. Obrigado por perguntar. Só preciso de pensar mais um bocado. Preciso de encontrar uma solução. Preciso de arrancar a Ana àquela porcaria!” – percebi que estava a precisar de falar sobre o assunto. E aproveitei a deixa que ele me deu:
“- Precisa de a arrancar a quê?”
“- A Ana é minha namorada há quase dois anos. Nós ficamos apaixonados um pelo outro desde a primeira vez que nos vimos. Ela era a minha vida e eu era a vida dela. Éramos felizes e fazíamos felizes as pessoas à nossa volta. As nossas cabeças fizeram planos para o nosso futuro sem fim… o nosso nós era para todo o sempre.”
“- Então, e o que aconteceu para isso se alterar assim tanto?”
“- Aconteceu a droga, minha Senhora. A Ana descobriu a droga através de uma colega de trabalho. Oferecia-lhe uma dose todos os dias, quando saíam do trabalho. Íam comprá-la ao Bairro de Contumil, que ficava no caminho para casa. A Ana ficou amiga do grupo dos traficantes, uns trastes, uns filhos da mãe da pior espécie, mas ela diz que são amigos dela! Só meses depois me apercebi disso. A Ana começou a emagrecer a olhos vistos, perdeu por completo a vontade de se rir, de se arranjar, de se tratar. Andava sempre nervosa e sempre à procura de dinheiro, sempre! Um dia segui-a desde o trabalho e fiquei com o meu coração despedaçado quando a vi deitada em cima de uns trapos nojentos a injectar-se, juntamente com uns poucos dos “novos amigos” dela.
A Senhora nem imagina a porcaria que aquilo é, lá para Contumil… Até adolescentes param por lá.. e a Polícia nada faz ou nada pode fazer para evitar isso. Nesse dia consegui arrancar a Ana de lá. Tratei dela até estar em condições de falar seriamente comigo. Fiquei aliviado quando pensei que ela tinha reagido bem e me prometeu que nunca mais se ia drogar outra vez. Que me amava, que não me queria perder, que eu era o homem da vida dela, que não sabia porque tinha começado com aquilo, etc., etc….”
“- E as coisas não mudaram a partir desse dia?” – perguntei.
” – Sim, mudaram. Durante um fim-de-semana… Na Segunda-feira seguinte a Ana voltou de novo a Contumil. E voltou a drogar-se. E no dia a seguir também e nos outros igual. Foram tempos que pareceram mais do que um inferno deve ser! E esses tempos ainda não acabaram. A Senhora sabe para onde ia o comboio que ela apanhou? Ia para Contumil. Eu ainda tentei impedi-la, mas não sei porquê alguém me agarrou e não me deixaram abraçá-la até ela perder o comboio. Eu sei que ela depois ia acalmar um pouco e eu teria assim uma pequena hipótese de a convencer a voltar para casa comigo.”
E ficamos mais de uma hora a conversar. Fiquei a saber que se chamava Phillipe e tinha nascido na Suiça. Os seus pais viviam e trabalhavam lá ainda. O Phillipe tinha-se mudado para Portugal depois de conhecer a Ana. A Ana era orfã de Pai e Mãe e quase não tinha família. Vivia com os Avós maternos. Passaram a viver um para o outro literalmente e foram felizes até a Ana fazer amizade com a tal colega de trabalho.
Tão novo e já com este peso em cima dos ombros!
Desejei-lhe as maiores felicidades e a maior das paciências para conseguir ajudar a Ana. Disse-lhe que iria rezar por eles. Para que voltassem a ser o que eram dantes. Fi-lo prometer que iria procurar ajuda profissional, para não ter que desistir da Ana.
E despedimo-nos. Dois estranhos que conversaram como se de dois amigos se tratassem. A vida às vezes oferece-nos destas coisas inesperadas. Mesmo sendo pesadas como esta o foi.
O Phillipe foi sumariamente julgado naquele dia pelas pessoas. Que injustiça se pode fazer, quando julgamos apenas pelas aparências!
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Muito bom.
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Obrigada.
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