A Fé

 

Sexta-feira à tarde. Dia 12 de Maio de um ano já muito lá para trás.
D. Alice tinha largado o seu trabalho de Contínua na escola e dirigia-se agora para casa dos Senhores onde costumava fazer arranjos de costura.
Essa família tinha um bando de crianças e a necessidade de arranjos de roupa era sempre permanente, não faltava trabalho: remendos em calças, baixar bainhas, revirar casacos de fazenda, cortar mangas, mudar botões, pôr molas e colchetes… até um vestido de boneca a D. Alice fez, às escondidas da Senhora, para a Zézinha! Aquela criança era especial. Sempre que a Costureira chegava, encontrava-a empoleirada em cima do portão à sua espera. Eram as duas muito amigas.
-“Olá D. Alice, estávamos aqui à sua espera, nós as duas” dizia a Zézinha, 6 anos, enquanto levantava e mostrava a sua boneca. – “Amanhã a D. Alice também vem connosco a Fátima?”
-“Vou sim menina Zézinha. O seu Paizinho disse que eu podia ir…”
-“E vai fazer outra vez aquela promessa?”
-“Vou sim, e desta vez vou conseguir cumprir…”
-“D. Alice, mas não é uma chatisse para si? Eu acho que não conseguia fazer isso de promessas, tenho sempre muita fome, e sede de água!”
-“Pois, quando a menina Zézinha for crescida vai perceber melhor.”
-“D. Alice, eu já sou crescida! Já chego à prateleira de cima da estante do meu quarto! E a minha bicicleta já é pneu 24!! Ainda não consigo chegar com os pés ao chão: para sair dela ainda preciso de me atirar para a relva, que é fofa, para não me magoar, mas dantes é que não era nada crescida… e continuo a não gostar da sua promessa..”
A D. Alice já há mais de um ano que se juntava nos dias 13 de Maio e 13 de Outubro a esta família, rumo a Fátima. Nos longínquos anos 60, ir a Fátima com partida do Porto, significava madrugar, sair de pequeno-almoço tomado e com farnel para a viagem. Poderia ser bem uma viagem de 5 ou 6 horas, dependendo das condições atmosféricas adversas ou não e da “disposição” do material do automóvel. Os furos eram quase um “must be”. E depois tinha-se que procurar a oficina para reparar o pneu, encontrar um mecânico bem disposto e de boa vontade para tratar disso, para conseguir enfrentar de novo os buracos traiçoeiros da estrada nacional.
A D.Alice, senhora muito devota, tinha já há anos feito uma promessa a Nossa Senhora de Fátima: se a filha passasse no exame da quarta-classe, a Mãe cumpriria a promessa de ir a Fátima sem comer, sem beber, sem falar e sem ver. A Sameirinho, a filha, era fracota da cabeça. Não fora feita para estudar. Baralhava-se toda nas contas e a ler e a escrever até dava pena… e tudo tinha piorado quando uma vez a D. Alice lhe secou o cabelo, enfiado nuns rolos, ao calor das resistências incandescentes de um aquecedor eléctrico. Ficou com a certeza que o Cérebro dela tinha ficado queimado.. até sentiu o cheiro como que a frango do churrasco ou como o cheiro que os porcos deitam quando lhes são queimados os pelos quando os matam… A partir desse dia, sempre que tinha ditado na escola, chegava a casa com as palmas das mãos todas vermelhas e inchadas, cada erro cada palmatoada e a Sameirinho praticamente só dava erros… só aliviava as dores com o azeite que a Mãe lhe esfregava nas mãos, coitada!
Mas a Sameiro, contra as piores expectativas, até tinha passado no exame. A Professora ainda tentou que ela fosse fazer a quinta classe, “dava-lhe mais bagagem”, mas a D. Alice não estava pelos ajustes. A Sameirinho tinha que ir trabalhar para ajudar nas despesas da casa. E lá foi ela, D. Alice já tinha apalavrado que ela iria servir para a Casa do Barril, que ficava a poucos quilómetros dali.  A D. Gertudes, a patroa, tinha uma reputação invejável no que dizia respeito a criadas: não batia nelas e era muito paciente com as mais novas e não admitia poucas vergonhas com namorados! Todas as que saiam de casa dela para casar, iam de enxoval completo oferecido pela patroa! A D. Alice entregou a filha à D. Gertudes e o combinado tinha sido a míuda vir a casa ao Domingo, de quinze em quinze dias.

-“Desta vez vou conseguir, mas preciso da sua ajuda e da dos seus manos. Têm que me ajudar…, combinado?
Bem vamos lá entrar que tenho muito para fazer! A menina já lanchou?”
-“Já, já comi um pão com marmelada e uma xícara de Nesquic.”

E lá foram as duas, mais a boneca arrastada por um braço, para dentro.

No dia seguinte, na manhã do dia 13 às 5 horas, já estava a D. Alice ao portão à espera do automóvel.
Carregou-se a mala de agasalhos – os dias ainda faziam muito frio – bancos e banquinhos de descanso, mantas, toalha de Pic-nic e o farnel. E que farnel! Zézinha e os seus irmãos, o Lourenço e a Carminho de 9 e 8 anos, já desde o dia anterior que assistiam extasiados ao encher do cesto de palha que só era usado para Pic-nics. Havia lá dentro uma infinidade de coisas boas, até um bolo de laranja que a Avó Gita lhes tinha feito! O melhor bolo do mundo, diziam as crianças … havia também empadas, rissóis, croquetes, arroz de carne com ervilhas, salada russa, carne assada e finamente fatiada, fiambre, queijo, arroz doce para desenjoar e um termo com café para os mais crescidos. Não faltava a água e a garrafa de Groselha. Para o Pai, tinha lá dentro do cesto duas garrafas de vinho tinto, não podiam ser mais, pois não se podia abusar do álcool enquanto se conduzia – dizia sempre o Pai.
“Duas garrafas chegavam-me perfeitamente. Se ficar com sede, comprava-se outras tantas pelo caminho!”
E lá partiu a família com a D. Alice, quase como convidada de honra, ou honorária, pela sua persistência..
E com a partida iniciou-se o cumprimento da promessa.  A D. Alice fechou os olhos, declarou que não iria beber nem comer, imediatamente antes de cerrar a boca para não falar mais. Nas suas mãos angulosas tinha um terço que começou a desfiar. Ía no lugar à janela atrás do banco do condutor, o lugar do Pai.
Com o inicio da promessa, iniciou-se também a costumeira admiração das crianças por tamanha façanha ao tentar cumpri-la.
“-Caramba, dizia o Lourenço. Como é possível fazermos uma viagem inteira sem falarmos? Eu não conseguia! A D. Alice não fica com vontade de falar? perguntou-lhe ele.
E a D. Alice não respondeu… Lourenço, rapaz esperto e ladino, não se ficou sem a resposta:
“-D. Alice, se a resposta for NÃO abane a cabeça assim – e com as suas duas mãos agarrou nas bochechas da pobre mulher e deu uns abanões na horizontal. – Se for SIM, faça assim – e os abanões desta vez foram vigorosos e na vertical. A D. Alice, com a cara cheia de Tokalon, ficou com os dedos do Lourenço marcados em ambos os lados. Mas a D. Alice não respondeu, limitando-se a dar um suspiro de resignação e a fazer o sinal horizontal sugerido pelo rapaz.
E a fé que a D. Alice tinha de que iria cumprir a promessa continuava inabalável, no final dos primeiros 5km.
Mas as crianças, espicaçadas pelo entusiasmo da aventura, não desistiam de “confortar” a D. Alice. Choviam as perguntas inocentes e de verdadeira preocupação:
“-A D. Alice não tem fome? Se tiver, pedimos ao Pai para pararmos um bocadinho e a D. Alice podia matar a fome…” disse a Carminho quando acabaram de passar a Ponte da Arrábida.
“-Já sei! Exclama a Zézinha – a D. Alice prometeu que não ia comer nem beber, mas não prometeu que não ía chupar! E chupar não é comer nem beber… pode chupar uma laranja ou pode chupar por uma palhinha a água com groselha! Que pena não haver esparguete: eu consigo sempre chupar o esparguete.. um dia engasguei-me a rir enquanto o fazia e saiu-me um esparguete inteiro pelo meu nariz! Hahaha, foi mesmo giro! Foi só pena o Avô estar a ver também e ter-me dado um sopapo bem dado! “É para te passar a engasgadela” disse o Avô… E então D. Alice, o que acha da minha ideia?”
“-A tua ideia é parva, como são sempre as tuas ideias – responde-lhe o irmão… Por isso o teu nome é “Zézinha, a Camelinha!””
“-Oh Pai! O Lourenço chamou-me Camelinha!”
“-Meninos, então? Olhem que estamos a ir para a casa de Nossa Senhora: nada de zangas hoje! Diz o Pai, ao mesmo tempo que atirava a beata de um dos seus cigarros “Negritas” pela janela fora. Expeliu uma última nuvem de fumo pela boca, na direcção do banco de trás, enquanto terminava o sermão “- Hoje não vou permitir zangas. Querem jogar às matrículas? E deixem a D. Alice em paz e sossego para ver se é desta que ela consegue cumprir o raio da promessa!”
-“Sim, Pai! O jogo das matrículas! Eu sou MT” diz rápidamente o Lourenço.
-“Quero ser MM” – anuncia a Carminho.
-“E eu sou o quê, Pai? Quais são as outras letras?”
-“Podes ser o OP Zézinha, são umas boas letras… 1, 2, 3: começou o jogo!”
E as crianças, supervisionadas pelo Pai, pois a batota era muita, lá se entreteram por uma hora com o jogo das matrículas. Ganhava quem visse maior número das letras que tinha escolhido. Depois de reduzidas umas poucas de vezes uns “avistamentos fantasmas” de matrículas MT do Lourenço, foi declarado na mesma o próprio, como o real vencedor, pois tinha visto 12 contra as 9 e as 8 das matriculas escolhidas pelas suas irmãs.
E voltaram a preocuparem-se com a D. Alice…
“- A D. Alice, se pudesse abrir os olhos, podia ver estes campos tão bonitos que estão a passar por nós – disse a Zézinha. Não quer espreitar só um bocadinho?”
“-D. Alice! Olhe ali tantas vacas! E ovelhas!”
“-D. Alice, quer ver a minha Caderneta de Cromos?” Pergunta o Lourenço.
“-D. Alice, não pode mesmo beber só um golinho de água? Só molhar a língua? Ai, que pena… é que eu estou com tanta sede… Mãe, passe-me a Garrafa de água se faz favor!” E a Carminho, sem tirar os olhos da D. Alice, para avaliar se ela nem sequer dava uma espreitadela à água, bebeu ruidosamente uns quantos golos de água e ainda entornou um bocado no colo da desgraçada que estava com o sol a dar-lhe através do vidro da janela e a morrer de calor. Mas a D. Alice resistiu à provocação… ainda!
Chegou então a hora para o almoço. O Pai escolheu um sítio bonito, muito agradável, com sombra e sol para todos os gostos.
Estendeu-se a toalha aos quadrados vermelhos e brancos com renda a remate por toda a volta, espalharam-se os pratos, copos, talheres e guardanapos. Por último, o Pai pegou no grande cesto e poisou-o ao lado da Mãe, para que ela destinasse as coisas como só as mulheres o sabem fazer.
E a D. Alice, onde ficou? Encostada ao automóvel, à sombra e a continuar a desfiar ritmicamente as contas do seu terço branquinho.
-“Pobre da D. Alice – pensava a sua grande amiga Zézinha – vê-se logo que está cheínha de fome! Ela não vê mas consegue cheirar com o nariz, impossível não sentir o cheiro delicioso destas empadas… vou ver se ela percebe!”
E a Zézinha, de empada na mão, vai ter com a D. Alice e, ao mesmo tempo que lhe passava a empada por debaixo do nariz, pergunta-lhe se ela não tinha fome?
E voltava a passar a empada para ela lhe sentir o cheiro… na terceira vez que o fez, a D. Alice acenou com a cabeça energicamente a dizer não e o seu nariz embateu em cheio na empada! Lá foi ela num voo rápido e em arco, partindo da mão da Zézinha e aterrando virada para baixo na areia que cobria o chão. A D. Alice, com o susto, quase, quase que abriu os olhos… e à Zézinha não lhe escapou isso! Depois de pedir desculpa pelo sucedido, foi a correr contar aos seus irmãos a fragilidade que tinha descoberto na D. Alice: com um susto a coisa, se calhar, resolvia-se…
Acabado o almoço, tudo arrumado de volta na bagageira e todos para dentro do automóvel do Pai. Começou a segunda parte da viagem. E quanto a furos de pneus, nem vê-los! Tudo rolava como tinha sido programado.
Os três irmãos já só tinham pouco mais de 100 km para conseguirem fazer a D. Alice sucumbir no seu propósito de cumprir desta vez a promessa.
“-Falta muito, Pai?”
“-Não, já só faltam duas horas mais ou menos”
“-E quantos minutos?”
“-Duas horas e dez minutos, filho”
“-E quantos segundos?”
“-Duas horas, dez minutos e vinte segundos, Lourenço!” diz o Pai, com um sorriso a florear-lhe a boca…
“-E agora Pai, quantas horas, minutos e segundos faltam?”
“-Lourenço! Acabaste de me perguntar isso!”
-“Isso foi há muitos segundos atrás, agora já é diferente, a hora…”
“-Vá, vê se dormes agora um bocado, vá lá… Deixa o Pai descansado – diz-lhe a Mãe.
Mas os três irmãos tinham mais que fazer do que dormir: todos os anos tinham conseguido que a D. Alice claudicasse na promessa, e este ano não poderia ser diferente: coitadinha, devia estar cheia de fome, de sede, com vontade de ver a paisagem e cheia de coisas para falar! E decidiram resolver o assunto rapidamente. Combinaram entre os três que quando o automóvel fizesse uma curva para a direita, os três se inclinariam também para a direita. Quando a curva fosse para a esquerda, cairiam os três para a esquerda, ou mais precisamente para o colo da D. Alice. Para ver o que iria sair dali…
Curva para a direita:
“-Ohhhhh… tudo para a direita!”
Curva para a esquerda:
“-Ohhhh… tudo para cima da D. Alice!”
Mas a D. Alice, apesar de amassada, pisada e assaltada, não falou, não abriu os olhos, não comeu e nem bebeu!
Tentativa falhada.
Mais uns kilometros percorridos e Fátima aproximava-se perigosamente, e a D. Alice que não desistia…
Decidiram então mudar de estratégia e atacar em força: a um sinal do Lourenço, dariam os três um berro e gritariam todos a plenos pulmões:
“-JÁ CHEGAMOS A FÁTIMA!”
E com o plano bem delineado, passaram à sua execução!
Que grande susto apanhou a D. Alice! Que grande salto que deu, até bateu com o seu rolo de cabelo, impecavelmente instalado no cocuruto da sua cabeça, no tejadilho do automóvel que ficou à banda… e o terço fugiu-lhe das mãos e foi parar lá atrás. E tudo isso ao mesmo tempo que abria os olhos e olhava lá para fora e perguntava: “Já chegamos a Fátima?!?!??”
“- Não, D. Alice, ainda faltam 30 km… ainda não foi este ano que conseguiu pagar o que prometeu…- respondeu o Lourenço.
Fez-se silêncio lá atrás, no banco… o Pai e a Mãe não se tinham apercebido do acontecido. A telefonia estava com o som muito alto e isso criava uma barreira entre os dois espaços, o da frente e o de trás.
“-Ainda bem, pensaram as crianças… talvez os Pais não tivessem aprovado o plano deles…!

D. Alice, ainda estremunhada, pensava na vida e também já planeava na sua cabeça ir a 13 de Outubro de novo com esta família a Fátima. E tinha fé que dessa vez iria conseguir cumprir a sua promessa!

“-D. Alice, quer água? Quer uma empada? Quer um croquete?”

“-Quero sim, Zézinha! Sempre querida a pensar na sua amiga Alice… é que estou cheia, cheia de fome, menina!”

E foi assim que aconteceu, como já tinha acontecido nas vezes anteriores e provavelmente aconteceria nas vezes vindouras:
a D. Alice não perdia nunca a sua fé!

Publicado por cristina sottomayor

Tudo o que eu escrevo aqui é um misto de vivências minhas e pura ficção. Mas mesmo na ficção, não consigo deixar de ser inspirada por momentos bons ou maus que vivi ou vi acontecerem à minha volta.

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