A Torneirinha – oitava e última parte.

 

A tal vida macaca estava a ficar cada vez mais longe.  Já mais de um ano se passara desde que Dionísio tinha sido salvo da má família. E ainda um pouco mais do que isso, desde que Bernardino tinha partido lá para o céu…
Agora, Dionísio já com 11 anos feitos, tinha uma caixa de madeira só sua que a Senhora mandou fazer a um carpinteiro, oferecendo-lha já recheada de todos os utensílios necessários para uma boa engraxadela de qualquer tipo de sapatos. Era o orgulho dele: madeira bonita, bem tratada. Tinha numa das pontas um suporte para os pés dos clientes. A outra ponta da caixa estava estofada com um tecido grosso em xadrês, servindo para Dionísio se sentar enquanto engraxava os sapatos. Não havia caixa de Engraxador mais bonita do que a dele! Todas as tardes, depois de terminar o serviço lá de casa e com a autorização dos Senhores, ia com a sua bela caixa às costas, até à Praça de D. Pedro. Já tinha até clientes que lhe eram fieis. Havia mesmo dois deles que tinham já dia e hora marcada. Dionísio era o melhor Engraxador de sapatos do Porto… Conseguia juntar um bom dinheirinho que guardava debaixo do seu colchão. Só gastava o que passou a mandar para os seus pais, lá no Marão. Na casa anterior, não o tinha conseguido fazer, porque os seus antigos patrões nunca o tinham pago, diziam que o que ele comia e o que gastava lá em casa era já muito.. que até devia ser ele a pagar-lhes a estadia!

Torneirinha continuava a trabalhar muito na casa de Álvares Cabral. A sua habilidade com as mãos granjeavam-lhe cada vez mais oportunidades para enxotar de si aquela tal vida macaca. Começou por aprender com a Maria a fazer manteiga. Todas as manhãs, pela fresca, que era para as natas não azedarem, batia o creme que se retirava do leite do dia. Batia, batia e batia. Juntava-lhe um pouco de sal e depois de descansarem e endurecerem um pouco, embrulhava-as em papel vegetal aos quadrados ou rectângulos. Arrumava no fresco os que eram para uso da casa e os restantes leváva-os ela própria à Ordem da Lapa uma vez por semana, que os comprava todos. Fazia também arranjos de costura e arranjos de peças quebradas, tortas ou simplesmente avariadas nos seus mecanismos. Nada cobrava, limitando-se a aceitar os trocos que as pessoas lhe davam, agradecidas pela sua ajuda. Assim ía também Torneirinha amealhando algum dinheiro, daquele que restava depois de dar à sua Mãe o quanto ela precisasse.
Pouco a pouco foi passando a fazer o que dantes era só a Senhora a fazer. Partir, arranjar e destinar a carne que vinha do Talho já era função da Torneirinha. Tinha também a seu cargo, na despensa, o controle e o arranjo de toda a fruta que era colhida e que vinha para a despensa para secar. Era já só ela que fazia o doce preferido da família: o Manjar branco. Era um doce de colher, feito com leite, açúcar, baunilha e farinha de arroz. Ninguém fazia o Manjar branco melhor do que a Torneirinha, só ela acertava na textura suave, aromatizada e perfeita do doce. Aprendeu também com a Senhora a fazer um pudim de ameixa com molho de Alperce. Torneirinha gostava muito de cozinhar, não se cansava de aprender coisas novas.
Nos dias em que calhava serem Peixinhos da horta para o jantar, Torneirinha oferecia-se sempre para os fazer: tinha muita paciência e gosto em os fritar um a um e bem os secar também individualmente. Não havia quem os fizesse melhores! Era o que os Senhores e os meninos lhe diziam. Já servia à mesa, juntando à sua farda preta e branca umas luvas e um pano de linho ambos de uma brancura alva, para manusear tudo o que ía ou vinha da Sala de jantar. Sabia bem a ordem dos pratos e até já decantava os vinhos antes de serem servidos. O seu patrão possuía uma boa adega cheia dos melhores vinhos de mesa, e de excelentes Vinhos do Porto. Torneirinha, sempre interessada, passou a ser conhecedora de tudo o que lá estava guardado. Sabia também como ninguém, distinguir todos os queijos, portugueses e estrangeiros e qual a melhor altura para os servir. Era ela que preparava o café, numa espécie de cerimonial à volta do Balão e da lamparina que aquecia a água fazendo-a subir, atravessando o pó castanho e bem moído dos grãos de café para logo a seguir descer, já transformado em bebida negra e aromática. Torneirinha tinha aquelas duas qualidades que raras pessoas possuem, ao mesmo tempo: uma espécie de fome de tudo aprender com uma vontade férrea de fazer muito bem as coisas, sem desistir. Era inteligente. E sempre sorridente, daqueles sorrisos serenos que parecem acolher todos que se aproximam…
Continuava a receber as suas lições de bordados e rendas, assim como começou, por ordem da sua patroa, a estudar e a aperfeiçoar a sua escrita e leitura.

Passaram alguns anos e já a “Vida Macaca” dos dois era uma pequena lembrança guardada bem lá no fundo dos seus corações. Torneirinha era agora a Governanta da Casa, e Dionísio tinha montado um estabelecimento, na Rua de Cedofeita que, para além de reparar sapatos, vendia cintos, carteiras, alforges, e tudo o mais que fosse feito em couro e pele. Especializou-se em botas de montar, feitas à medida. Eram muito procuradas, tinha até clientes que vinham de Sintra e de Viseu por causa das suas botas únicas e muito boas.
Continuava a viver na cave da casa de Álvares Cabral, pagando a sua estadia com o trabalho que ainda lá fazia.
Naturalmente, a amizade que ambos sentiam um pelo outro, foi-se transformando em algo maior. Já tinham a palavra um do outro para o seu casamento, quando tivessem ambos 18 anos. Torneirinha estava agora com dezassete anos e era uma bonita rapariga… Dionísio, um belo homem, só tinha olhos para a sua Torneirinha.
Quem os via juntos, não deixava de pensar que parecia terem sido feitos um para o outro e os augúrios para o futuro dos dois eram inevitavelmente dos melhores…

A vida deles, que lhes tinha sido bem macaca para eles a certa altura, era agora uma infinidade de esperança. Eram os dois trabalhadores, bons amigos e tementes a Deus. Tinham consciência de terem tido a imensa sorte de encontrar a família que os ajudou e que lhes permitiu construirem a sua vida em comum, exemplarmente.
Os seus corações não esqueciam isso, nunca.
Assim como nunca se separaram dos seus amigos, Aninhas e Zé Bento.

Aos corações bons e humildes, Deus ajuda… se não for nesta vida efémera, ajudará na outra que é eterna!

E vivam as vidas que conseguem deixar de ser Macacas!

Fim

Publicado por cristina sottomayor

Tudo o que eu escrevo aqui é um misto de vivências minhas e pura ficção. Mas mesmo na ficção, não consigo deixar de ser inspirada por momentos bons ou maus que vivi ou vi acontecerem à minha volta.

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