Ser feliz é muito difícil, e não é um estado constante pois, tal como a tristeza, a felicidade explode dentro de nós por momentos, como as ondas do mar que vão e vêm sem nunca se repetirem… e se tivermos a sorte de sermos felizes em alguma altura das nossas vidas, quando o somos, não o sabemos… só mais tarde – quase sempre demasiado tarde – o reconhecemos, mas uma condicionante muito importante para o ser é, sem dúvida alguma, possuirmos, entre outras, a capacidade de conseguirmos não dar importância a quem nos magoa, a quem nos fez mal… Para isso é preciso muita reflexão, meditarmos no que realmente essas pessoas que nos foram desleais, destruidoras da nossa essência, valeram para nós. Na verdade, se nos destruíram – por dentro – não existe maneira de nos merecer. Não há volta a dar, é mesmo preciso olhar para dentro de nós e fazermo-nos as perguntas-chave que nos ajudem a tudo relevar e, em consequência, a tudo desvalorizar, possibilitando assim a cicatrização do nosso coração ferido assim que encontrarmos as respostas a essas perguntas, que deverão ser honestas e objectivas. E então depois, finalmente, vai ser fácil de percebermos que não valeu mesmo a pena e ainda bem!
Compreendemos também que nada foi por acaso. A desilusão e a constatação de que não era o que nós precisávamos nem o que nos fazia bem, de tão cretinos que foram connosco, seguem-se uma á outra, por mais que demore a acontecer, permitindo-nos ficarmos a saber quais são para nós as pessoas que se importam e as que nos importam. Crescemos à medida que vamos tendo conhecimento das coisas, deve ser isso a chamada sabedoria.
O problema é sempre pôr em prática a razão, desautorizando um Coração que teime em ser avesso a mudanças e que ignore factos evidentes de falta de respeito e muita deslealdade.
Quanto mais a pessoa é de boa vontade e generosa, mais se deixa afundar nesse abismo infernal que pode ser um mau relacionamento com alguém que de início é muito cativante, escondendo o seu verdadeiro carácter.
Mariazinha era uma daquelas pessoas boas e cândidas.
Conheceu o António com apenas 17 anos, quando ele já tinha passado dos 30. Por essa altura, vivia com uma Tia materna no bairro da Lapa. Era uma de dezasseis irmãos que, à medida que íam nascendo na longínqua vila da Nazaré, no seio de uma família de uma pobreza extrema, eram distribuídos, ainda recém-nascidos, pela família, amigos e mesmo alguns conhecidos que se voluntariavam para educar as crianças. A Mariazinha tinha tido sorte, era a quinta filha e ainda antes de ter nascido, já a Mãe dela a tinha oferecido a uma irmã. Cresceu sem fartura, muito modestamente e sempre trabalhando para ajudar a Tia, que era Costureira. Frequentou a Escola Primária de Antero Quental, aprendeu a Catequese, fez a Primeira e Segunda Comunhão na Igreja da Lapa, onde todos os Domingos ouvia a Missa ao lado da Tia. Mas, apesar de toda a austeridade, teve uma infância com algum amor, segurança e cuidados maternais providos pela Tia. A Tia era solteira e, quando decidiu tomar a sobrinha a seu cargo – logo a seguir a ter comprado a casinha onde vivia, com a generosa ajuda da sua antiga patroa que serviu lealmente durante mais de vinte anos – pensou eventualmente na sua velhice que um dia iria chegar… teria assim quem a amparasse, se fosse preciso. A educação que lhe deu, foi espartana. Mariazinha “não tinha que ter quereres” – como dizia a Tia – e fazia tudo o que ela a mandava fazer. Transmitiu-lhe bons valores e educou-a através de bons exemplos que lhe foi dando, em toda a sua fé Cristã. Frequentou a escola até à quinta classe. Ao mesmo tempo, ía aprendendo a arte da costura. Começou por alinhavar, coser baínhas e passar a obra a ferro – aquecido nas brasas do fogão a lenha – muito bem passadinha. A Tia dizia que, metade do trabalho de uma costureira era o passar a ferro, vincar no sítio certo os tecidos… depois era só coser para consolidar a obra. Mariazinha escrevia razoavelmente e sabia fazer contas de cabeça como ninguém.
Passou a tratar das contas da costura da Tia. Fazia o registo, numa Sebenta de capa dura, de todos os trabalhos entregues, nome das clientes, descrição da obra e por fim escrevia – ou não – a palavra PAGO, com a tinta vermelha. Tratava muito bem dos seus aparos: tinta castanha para um, azul para outro e vermelha para o que ficava para saldar a conta. Os seus tinteiros estavam sempre limpos, sem tinta escorrida. Fazia bom uso do mata-borrão pois não gostava de ver a Sebenta borratada. Tinha tudo muito bem guardado numa caixa de cartão. Mariazinha era metódica e arrumada.
A Tia já nem se dava ao trabalho de olhar para a Sebenta, pois sabia que Mariazinha era muito cuidadosa e nunca se enganava. Naquele dia em que a D. Laurinda disse que lhe faltava uma camisa do marido que tinha mandado para coser, foi o que Mariazinha tinha registado, como a quantidade e o género das peças na Sebenta que salvou a situação. D. Laurinda procurou depois melhor em casa e encontrou a tal camisa!, Que alívio…iria ser um problema, a D. Laurinda parecia o cão-de-guarda-raivoso lá do bairro….
Foi num Baile da Paróquia que Mariazinha deu de caras com o António pela primeira vez. Ele não pertencia ao Bairro da Lapa, vivia em Vila Real e estava no Porto de visita ao Tio dele, o Pároco da freguesia. Mariazinha ficou sem fôlego, quando o viu pela primeira vez. Estava sentado numa das mesas corridas improvisadas para o baile, emprestadas pela Associação Futebolística do Porto, antiga glória de equipe de Futebol que tradicionalmente ganhava sempre aos Passarinhos da Ribeira. Chegaram mesmo a ganhar um Campeonato Distrital!
Nunca tinha visto um rapaz tão bonito assim: cabelos pretos, barba muito bem feita que deixava ver a sua pele queimada pelo sol de Agosto, olhos castanhos cor de mel, doces mas ao mesmo tempo brincalhões e um sorriso – que deixava aperceber uma fileira de dentes brancos e bem nivelados – de derreter o coração de qualquer uma. Mariazinha ficou como que estacada no chão, perdida em sensações e vontades que desconhecia existirem. Quem seria ele? – pensava ela. Estava a conversar com o Sr. Aníbal, o dono da Funerária lá do Bairro. Este contava-lhe qualquer coisa que devia ser muito engraçada, pois fazia o rapaz bonito rir-se e com um sorriso que parecia iluminar toda a sala. Mariazinha, passado o transe da descoberta, olhou em redor e percebeu que não era a única a olhar para ele. Solteiras e casadas, tanto fazia, não despregavam os olhos dele. Recompôs-se e dirigiu-se ao lugar que sua Tia tinha guardado para ela, a seu lado.
– Porque demoraste tanto, rapariga?
– Estava a ver uma coisa, minha Tia.
– Sempre na lua! Viste o sobrinho do Senhor Padre ali ao fundo a falar com o Abílio dos mortos? Acho que se chama Antonio, é de Vila Real e está cá a ajudar o Tio nas obras da Igreja… é um belo rapaz, não achas? Era bom para ti…
– Oh Tia! Não diga essas coisas que eu não gosto! Eu não me quero casar com ninguém…
– Lá estás tu a ser teimosa! Mas não te queres casar porquê? Não faças muito género porque senão as outras raparigas passam-te todas a perna. Eu bem que reparei que não há um rabo de saias aqui no Baile que não esteja a olhar para ele… Até tu, que eu bem te vi a olhar como se tivesses visto um anjo!
– Tia! Eu não estava a olhar para ele… estava a olhar para o Senhor Abílio!
– Pois, pois… como se eu te acreditasse: para o Abílio dos mortos? Para aquela cara amarela-esverdeada com mais buracos de furúnculos dos que a Lua tem? Com uma risca ao lado de sete cabelos a começar no pescoço para tentar tapar a careca? Estavas a olhar para ele? Hahahaha, fazes-me rir, rapariga!
E Mariazinha, corada até nas orelhas, calou-se depois de pedir à Tia que não falasse mais sobre isso. Tinha medo que alguém ouvisse. A sua cara estava numa aflição tal que a Tia teve pena dela e não insistiu mais no assunto.
Começou a música, tocada por uma banda contratada já há muito para vir animar o Baile Anual da Paróquia. Mariazinha, com os seus cabelos castanhos-doirados e ondulados a caírem-lhe em cascata pelos ombros, estava muito bonita. A sua pele clara faziam os seus olhos grandes, de um azul quase inventado, sobressaírem-lhe na cara como dois faróis. Tinha as sobrancelhas muito bem desenhadas, boca cheia e bem delineada, pintada com um baton de cor suave. Era a única maquilhagem que Mariazinha usava nessa noite e mesmo assim, tinha sido por insistência da Tia. O seu pescoço era comprido, dando-lhe um ar muito elegante. Era alta, contrariamente ao que era normal, media mais de um metro e setenta. Tinha uma boa figura. Mariazinha era o que se costuma chamar de um belo pedaço de mulher, que não deixava indiferente ninguém por quem passasse, mesmo algumas mulheres, que para ela olhavam disfarçadamente, roídas de inveja…
Foi convidada para dançar pelo Francisco, um dos seus discretos e eternos apaixonados, que já se tinha conformado com a falta de interesse por si da Mariazinha. Todavia, não passava um baile ou festa que não voltasse a tentar a sua sorte, sendo o primeiro a ir buscar a Mariazinha para dançar. Eram os dois bons dançarinos. Mariazinha deixava-se conduzir por Francisco, fazendo os dois parecer o Tango uma dança fácil e simples de dançar. Depois de voltas e mais voltas no soalho primorosamente encerado do Salão da Paróquia, Francisco, no final da música, conduziu Mariazinha de volta ao seu lugar, ao lado da Tia. E afastou-se, não sem antes obter dela a promessa de uma outra dança, lá mais para diante.
– Não sei porque ainda dás trela a esse chato do Francisco…
– Tia! Não fale tão alto, as pessoas podem ouvi-la… E o Francisco não é chato. Dança muito bem e não se põe com conversas idiotas.
– Pois, pois… Dança bem, fala bem, blá blá blá, mas não queres namorar para ele! Já te disse: não te podes dar ao luxo de perder muito tempo, ou queres ficar solteirona a vida toda, rapariga?
– E então, e se ficar? Não é a minha Tia uma solteirona? Nem todos tem que casar…
– Exactamente por ser solteirona que sei do que estou a falar. Não quero a mesma vida para ti. Na verdade nós, as mulheres, não precisamos de homens para levarmos a nossa vida para a frente. Por vezes até atrapalham. E se for para sermos criadas deles, nem vale a pena. Já sem falar de maridos como o Roberto da Lina, que bate nela por tudo e por nada… ou porque abre a boca, ou porque não abre, ou porque fez isto ou logo a seguir porque não o fez…aquela Lina leva uma vida de penitência e tortura, coitadinha. Isso não quero e hei-de fazer tudo o que conseguir para que não te calhe a ti tamanha má sorte! Ainda me lembro do namoro deles: ele sempre muito apaixonado, sem olhos para mais nenhuma, demonstrava ser muito paciente e amigo dela. Toda a gente comentava como a Lina tinha tido a sorte de encontrar um homem assim. Passado nem sequer um mês do casamento, apareceu ela na Missa com um dos olhos negros e de tal maneira inchado que nem o conseguia abrir… “Que tinha caído das escadas” – dizia ela a quem lhe perguntava o que tinha acontecido… Dizem sempre todas o mesmo: ou foi nas escadas, ou foi numa porta…
Mas, se tiveres a sorte de encontrares um homem que te ame e seja verdadeiramente teu amigo, isso sim: será de louvar e agradecer a Deus!
– E como vou ter a certeza que é o homem certo?
– Isso é coisa em que já tenho pensado. Não me parece que se consiga perceber isso durante o namoro. O melhor mesmo é observarmos como esse homem se comporta com as pessoas à sua volta, tal como com a família, amigos e colegas de trabalho. E, se tiveres mesmo a sorte de conseguir perceber como esse homem trata os seus inimigos ainda melhor: nada como um inimigo à vista para fazer vir à tona o verdadeiro carácter de uma pessoa… Também é importante percebermos que tipo de exemplo teve nos seus pais. Olha que eu já consegui detectar assim homens maus… Foi sempre o que eu ouvi a minha Mãe e a minha Avó dizer para eu fazer e quase nunca me enganei. Houve um rapaz, que me queria para mulher durante mais de um ano. Nunca o aceitei, não gostava dos modos dele e foram várias as vezes que o vi tratar mal as suas irmãs. E quando o fazia, o seu Pai apoiava-o incondicionalmente, chegando mesmo a bater nas filhas porque o irmão delas dizia que elas o mereciam. Quando desistiu de mim, começou a arrastar a asa pela falecida Mãe da tua amiga Celeste. E deu no que deu: 12 filhos de seguida, intercalados com surras e pontapés que lhe foram fatais ainda não tinha chegado a fazer sequer 38 anos. Morreu literalmente de pancada que apanhou do marido! Safa, do que eu me livrei!
Mariazinha já não ouviu esta última frase da Tia, estava toda alvoraçada ao reparar na aproximação de António … a sua cara fez-se vermelha e quase não conseguiu esconder a sua atrapalhação. António convidou-a para dançar, segurou-lhe a mão para a ajudar a levantar e dirigiu-se para o meio do salão com ela. Tinham os olhos de toda a gente postos neles. Faziam um bonito casal.
Mariazinha deixou-se de novo conduzir, mas desta vez parecia que tinha asas…. quase não sentia os seus pés tocarem o chão! Tinha apenas consciência do braço dele na sua cintura e na outra mão que agarrava firmemente a sua. “Que bem dançava o António!” pensava Mariazinha.
“Que bem dançavam os dois” – pensavam todos os presentes no Baile…
Conversaram, dançaram novamente, tomaram um refresco juntos, dançaram de novo, Mariazinha apresentou António à Tia, tornaram a dançar mais umas poucas de vezes e despediram-se no final do Baile já combinados para uma visita ao Palácio de Cristal no Domingo seguinte, se a Tia o permitisse, pois claro!
E a Tia permitiu o passeio…. e assim se consumou o início do namoro dos dois. Passeios, Matinês Dançantes, Festas Populares… a tudo íam apenas para ficarem juntos. Mariazinha andava feliz, António era o sonho de qualquer rapariga. Oferecia-lhe presentes, fazia programas originais com ela, comprava-lhe flores, livros e até houve uma vez que lhe trouxe um quadro que tinha encontrado numa casa de velharias:
– “Mal vi este quadro, imaginei que tu havias de gostar de o ter… vê que cara amorosa tem este miúdo e como ele chora! Gostas, Mariazinha? Gostas? Vai ficar bem no teu quarto…”
Mas a sua Tia, com a sabedoria que lhe vinha da idade, ía reparando que sim, os presentes e as surpresas eram muitos e bons, mas…. o tempo ía correndo e anel ou algum compromisso sério, nada de nada! Havia mais de um ano que se conheciam. E um ano era tempo mais do que suficiente para darem um passo mais sério.
-Tia! O António gosta de mim, tenho a certeza, se ele não me pede em casamento é porque lá tem algum plano. Se calhar quer ficar com a vida mais estabilizada…
Mas Mariazinha, apesar de tentar desvalorizar a atitude do seu António à frente da sua Tia, sentia que qualquer coisa não estava bem com o namoro dos dois. Sempre que tentava falar com ele sobre casamento, ou sobre filhos ou sobre uma casa que lhe parecia boa para viverem, António desviava de imediato o assunto e com cara de poucos-amigos, diga-se de passagem..
Outra coisa que a intrigava e entristecia era o seu namorado nunca a ter levado a visitar o Tio dele, o Pároco da Lapa. Causava-lhe estranheza isso e disse-lhe, um dia:
– António, quando me apresentas ao teu Tio como a tua namorada?
– Porque o queres conhecer, ao meu Tio?
– Não é o querer conhecê-lo, conheço-o desde que me lembro… Ou já te esqueceste que eu sempre vivi aqui? Acho é que ele não sabe que nós namoramos e já é mais do que tempo de ele o saber. Ainda na semana passada o encontrei na Junta e ele me perguntou: – “Para quando um namorado para casar, Mariazinha?”
– Ele perguntou-te isso?? E tu, que lhe disseste?
– Não disse nada, com a atrapalhação … E ele sorriu e deu-me a benção, só isso.
– Ainda é cedo, e para além disso eu quero que tu conheças toda a minha família, no mesmo dia. Vou pedir à minha Mãe para a juntar toda num grande e bom almoço lá em cima, em Vila Real. Eu quero que tudo seja perfeito, lindo como tu és. Até o dia tem que ser uma beleza, para ser o dia em que a minha família vai ficar a conhecer a maravilha de mulher que eu amo!
E Mariazinha, rendia-se a estas palavras que lhe soavam mágicas aos seus ouvidos de amantíssima… António ficava então muito carinhoso e durantes os dias seguintes redobrava-se em mais cuidados e atenções próprias de um verdadeiro apaixonado, até que ela se esquecesse da conversa….
(Continua)