Ou o Zé da Quinta, ou o Zé Feitor, ou o Zé da Ana ou simplesmente o Zé. Era por estes nomes que ele era conhecido. Entre nós, na família, era o Zé da Tapada, ponto final.
O Zé da Tapada era um homem alto, curvado pela altura dos ombros, magro e seco de carnes, cara comprida, nariz grande e adunco, sobrancelhas despenteadas e boca sorridente e afável quando se dirigia a nós, crianças, mas de poucas brincadeiras, muito dura na forma e nas palavras vociferadas quando se tratava de por os trabalhadores da quinta a trabalharem! O que o pobre do Mário, mandrião por natureza, sofria com ele… e sempre de barba feita. Andava vestido de fato escuro e camisa branca e em vez de casaco, usava o que parecia uma casaca, comprida e preta. Quer fosse Verão, quer fosse Inverno.
Sempre me lembro dele a caminhar apoiado numa bengala. O Zé era gago, e parecia não ter idade. Não a dizia, e ninguém lha conseguia determinar. Era brincalhão e tinha um jeito inato para nos contar histórias, daquelas que tão depressa assustavam como logo a seguir nos faziam rir à gargalhada. Era ele que, sempre que era preciso, nos levava às nossas visitas à Quinta do Enxido, aos primos e amigos Magalhães Queiróz.
O Zé guiava o Woslkwagen Carocha, de cor preta, do ano de 1961. A matrícula desse carro era RO-15-73, e era distinguido dos outros carros pelo nome que lhe demos: o Ró. Nessas visitas conseguíamos enfiar-nos dentro do Ró para cima de sete ou oito de nós, tudo a monte, claro. Mas essas viagens eram sempre divertidas e animadas pelas canções que o Zé cantava, com voz grossa e muito bem colocada que faria inveja a qualquer Luciano Pavarotti deste mundo. E quando cantava, não gaguejava…
O Zé nunca perdia a paciência connosco. Contava as vezes que fossem precisas a história de como ele ficou gago para sempre. Sim, porque ele não tinha sido
sempre gago… essa fatalidade aconteceu-lhe já ele era um homem feito, dizia-nos ele.
“-Os meninos querem saber como tudo aconteceu?”
“-Sim, Zé! Conta-nos por favor!”
E lá vinha a história do Zé da Quinta, como ele tinha ficado gago:
Um dia, andava ele pelo monte a apanhar e juntar carqueja que amarrava aos molhes com cordas feitas de folhas de sisal. Tinha subido o monte cedo, ainda o sol não tinha aparecido, pelas 5h30 da manhã. Planeara juntar uns vinte molhes de carqueja e depois voltava com o carro de bois para os levar para baixo. O Zé era assim, organizado. Valia-lhe só ter que subir o monte uma vez por semana. Os seus vizinhos, não tão previdentes como ele, faziam-no diariamente. E subir o monte todos os dias para depois o descer carregados de carqueja, não fazia muito bem às costas… pensava o Zé da Quinta.
Nesse tal dia, já com meia dúzia de molhes de carqueja feitos, o Zé sentiu qualquer coisa de estranho que o fez ficar alerta. Olhou à sua volta, sentindo-se observado, mas não viu ninguém. Continuou a tratar da carqueja, mas como aquela sensação esquisita de não estar sozinho não desaparecia, não mais descansou…
“-Que raio! Seria algum dos seus vizinhos a meter-se com ele?” Ainda por cima nos últimos meses tinha havido notícias de avistamentos de lobos pela região… tinham até aparecido duas cabras mortas, meias comidas! Só podiam ser lobos…
E de repente, o Zé viu-o!
Um lobo enorme, imponente e majestoso que o olhava fixamente. Estava sentado nas suas patas traseiras, a língua muito cor-de-rosa ao dependuro num dos cantos do focinho, por cima de uma fileira de dentes muito brancos e afiados – nesta parte da história, o Zé da Quinta descrevia quase que os dentes afiados do lobo um a um, dramaticamente, lentamente, provocando-nos um friozinho na barriga – olhos cor de mel que pareciam lançarem faíscas de pura maldade! E permanecia imóvel, em observação, como que controlada… como que à espera do momento certo para atacar.
O pobre Zé da Quinta apanhou o susto da vida dele: Oh pernas para que vos quero! Desatou numa correria desenfreada, louco por encontrar algum abrigo seguro! E encontrou-o na forma de uma árvore, um Medronheiro, dos muitos que cresciam pelos montes fora. Este Medronheiro era alto, contrariamente ao que normalmente são. E o Zé da Quinta não pensa duas vezes, sobe a árvore e só depois de se sentir seguro e protegido pelas alturas é que se atreve a olhar para trás à procura do lobo. E lá vinha ele, passo a passo, calmamente, sem tirar aqueles olhos terríveis de cima do Zé. E vinha com um ar esfomeado, pareceu-lhe ao Zé… o que é que ía agora fazer? Que remédio tinha ele senão esperar em cima do Medronheiro, até que viessem à sua procura ou então que o lobo desistisse de o comer.
O lobo, esse malandro, instalou-se quase debaixo da árvore e continuava a não tirar os olhos daquele homem apetitoso para comer… e sentado de novo nas suas patas traseiras ficou à espera.
E as horas foram passando. E já não era só o lobo que estava com fome, também o Zé já tinha a barriga a dar horas. E as horas continuaram a passar, e o lobo não se mexia do seu posto de vigilância.
E o Zé da Quinta desesperava, com fome, com sede e com medo de ter que passar toda a noite em cima da árvore..
E foi mesmo isso que aconteceu, chegou a noite e o lobo ainda não tinha abandonado o seu posto, sempre à espera de conseguir ferrar o dente nos ossos do Zé. Sempre paciente e sempre de olhos fixos na sua presa.
Já passavam das quatro da madrugada, quando o Zé teve uma ideia, uma excelente ideia: despia a roupa toda que tinha vestida, com ramos e folhas fazia um corpo parecido com o seu, vestia-lhe as suas roupas, punha-lhe o seu boné e conseguiria assim enganar o lobo! O único problema seria ter que voltar em cuecas para a aldeia… um grave problema, dizia-nos ele! E nós todos concordávamos com ele.: aparecer em cuecas à frente de toda a gente? Que horror!
E assim fez o Zé da Quinta. E assim conseguiu enganar o lobo. Depois de o seu sósia montado, desceu pela parte de trás da árvore e, em cuecas, partiu a correr para a sua aldeia. De relance, por cima dos ombros, ainda conseguiu verificar que tinha realmente enganado o lobo. Ele continuava lá, de olhos fixos no boneco que o Zé tinha feito.
Ufa, que alívio!
Quando o Zé da Quinta chegou à aldeia, encontra um grupo de homens, vizinhos e amigos, que estavam de partida para o procurarem pelos montes. Todos ficaram espantados por ele ter apenas as cuecas vestidas!
“-Então Zé, isso são propósitos? Olha se houvesse aqui mulheres…”
E então o Zé da Quinta começou a contar-lhes como tudo se tinha passado.
“-E…e…e…u, f..f..f..ui ao mo..mo…mo…mo…nte apa..apa,,,apanhar ca..ca..rqueja”
O Zé estava gago!
E nunca mais ficou bom. Ficou a gaguejar para sempre.
E nós todos impressionadíssimos com a grande coragem e a inteligência do Zé ao ter conseguido enganar o lobo mau, quase lhe admirávamos a gaguez que era a prova da sua enorme bravura.
E foi assim que o Zé da Quinta ficou gago. Havia outra versão para isso, que tinha a ver com o primeiro carro que o Zé tinha visto na sua vida, com o susto que apanhou, atirando-se para a ladeira nas Carvalheiras, mas nós achávamos que havia muito mais glória e muito mais verdade na história do lobo.