O Rio

Um rio procura, sem fim, desaguar noutro rio, num lago ou no mar. Está na sua natureza fazê-lo, não há nada que possa alterar essa sua essência. Por vezes vai de encontro à bonança, à calmaria, aos braços abertos de quem o quer receber. E isso é capaz de fazer um rio feliz… Mas nem sempre é fácil, para além de encontrar pelo seu caminho muitos obstáculos, quando desagua pode confrontar-se com um mar que não lhe facilita a vida. Um mar que não é de rosas, não… Um revoltoso, ou um que esteja em plena praia-mar… nesses casos, o rio vai ter que forçar ainda mais a sua correnteza e por vezes, ao fazê-lo, destrói os seus próprios paredões mal estruturados, que apresentem fendas de outras tempestades ou de desleixos na sua edificação, ou então que sejam pequenos ou frágeis demais para reter a força das águas. E quando rebenta com tudo, o rio é implacável. Não adianta oferecer-lhe resistência … o melhor é deixá-lo seguir o seu curso, a sua sina, o seu destino imutável.
Quantos destroços ele não arrasta consigo? Quantos sonhos despedaçou pelo seu caminho? Incontáveis são os estragos que provoca, alguns com consequências posteriores e irreversíveis.
Deixem os rios irem para onde precisam de ir! Libertem-lhes as correntes e não entulhem o seu caminho com miudezas e desperdícios de fraqueza humana. Os rios sabem bem para onde têm que ir e quem levam de arrasto com eles.
Um rio, na sua sensibilidade e no seu íntimo, sabe bem que terá sempre a Mãe natureza do seu lado. Por isso ele corre, primeiro com calma, logo depois ganhando a sua força ao longo do seu percurso. Tem troços suaves, meigos, apaixonados, tem outros que parecem o Diabo, como são os Cachões… engana muitos tolos e incautos com os seus redemoinhos que parecem brincadeira de Carroussel. O rio não perdoa desaforos e desprezos à segurança. As águas do rio pesam os corpos, afundam os braços e as pernas que não se unem em ritmo cadenciado. O rio ri-se de quem se ri dele… o rio pode ser mau e traiçoeiro. Não se brinca com o rio, mas o rio deixa que brinquem nele, com franqueza, com respeito e com lealdade. O rio gosta de risos, aumenta-os fazendo-lhes eco. O rio pode ser casa segura e pode ser encruzilhada da vida. A vida do rio não morre, tem sangue fresco, sempre a ser renovado, a correr-lhe no seu interior.
O rio esconde segredos e, por vezes, revela os mais assustadores quando os mostra a quem os quer ver e a quem nunca ousou imaginar vê-los… mas o rio também guarda doces segredos, tristes segredos.
O rio também faz coisas más, não tem ninguém que ralhe com ele. Conheço um rio que um dia engoliu pessoas e barcas, numa representação Dantesca, nesse dia o rio foi mau… o seu leito encheu, de tantas lágrimas que fez derramar! Mas a culpa foi do rio? Foi ele que se devia ter acautelado contra tal tragédia? Não, não! Mil vezes não… o rio fez exactamente o que o Criador o mandou fazer: correu em direcção ao mar, sem parar. A tristeza humana, essa que precisa de purga desde sempre, não lhe esteve à altura, distraiu-se a pensar que tinha o rio garantido, como faz com quase tudo à sua volta. Para onde se escoa a humildade humana? Pelo rio? Tanto e tanto mal se evitaria se ela ficasse sempre junto a nós, dentro de nós! Afinal de contas a nossa alma devia ter simplicidade e ser humilde na sua estrutura, mas parece ser coisa muito difícil mantê-las lá dentro! Tarefa inglória. Tenho que rezar pelas almas, principalmente pelas perdidas e por aquelas que não se deixam encontrar. Preciso de imitar as que são singelas e inocentes, as que, sem o saberem, já devem ter o céu ganho.
O rio tem na sua respiração a vida. A sua e a de muitos mais seres vivos. É alimento, é cura, é frescura e mata, por isso, a sede às bocas sequiosas…
O rio reflete a prata das escamas, o redondo dos seixos e esconde a sua profundidade. Até no seu lodo o rio ganha, sendo o sustento de muitos…
Mas há rios que ficam bravos, escuros, cruéis com os outros que se lhes aproximam. Fujam desses rios! São egoístas e não são misericordiosos. Não sabem abraçar, não sabem consolar ao não nos mostrarem beleza. Como o poderiam fazer? Não são bonitos em profundidade, apenas a sua superfície brilha e parece fazer fulgor. Apenas à superfície, repito. Não valem a pena.
Podem ser tão enganadores, tão cheios de futilidades e de vaidades…
É muito cansativo ter que ouvir um rio a elogiar-se a si próprio. Fujam, fujam desses!
Um verdadeiro rio tem pulsar próprio, tem sangue para purificar.
Um rio é a própria vida, um rio é um coração.
As suas águas são o sangue, que ele manda correr pelas veias e artérias…..

Publicado por cristina sottomayor

Tudo o que eu escrevo aqui é um misto de vivências minhas e pura ficção. Mas mesmo na ficção, não consigo deixar de ser inspirada por momentos bons ou maus que vivi ou vi acontecerem à minha volta.

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