Pedro e Inês – encontros e desencontros fora de tempo.
Sexta parte.
Pedro sentia que de alguma maneira tinha perdido grande parte da sua criatividade. Por mais pequeno que um projecto fosse, dava voltas e mais voltas e era com muito esforço que conseguia terminar algum. Tinha dificuldades em concentrar-se. Estava triste, sentia-se sozinho como nunca dantes se tinha sentido. Mas felizmente para Pedro, em nome da sua natural reserva, toda a gente à sua volta achava que Pedro andava triste ainda em consequência do tempo que esteve em estado de coma. O Senhor Américo, o do Quiosque, que tinha a mania que sabia de tudo, até lhe chegou a dizer “que não se preocupasse, era até bastante vulgar as pessoas que acordassem de um coma profundo, mudassem de feitio: se era do género nervoso, passava a ser calmo e se fosse do género calmo, passava a ser nervoso! Até quem tivesse cancro lhe acontecia coisa parecida, principalmente às mulheres que antes de lhe cair o cabelo tinham uma cor e depois de ele voltar a crescer ficavam com outra, normalmente todo branco…”… ?!? Pedro sorriu, só a lembrar-se disso… A verdade é que Pedro tinha saudades daquela outra Inês que tinha sido a sua companheira preferida… a sua amiga, a sua crítica, a sua brincalhona, a sua melancólica, a sua defensora de ratos e de aranhas, a sua mulher bonita… Trazia-a nos seus pensamentos, nunca a conseguia enxotar do seu coração, a ela e à tristeza que frequentemente o assolava sem que a conseguisse controlar. Devia ter sido mais cauteloso e não se ter deixado apaixonar por ela. E nisso nem sequer a podia culpar, Inês tinha sido bem clara quando declarou que nada queria ter com Pedro, que tinha a porta fechada para qualquer nova relação. Apenas amizade. Mas nem amizade pelos vistos ela sentia por ele, de outro modo não o teria deixado assim sozinho quando estava ainda doente.
Seu Pai tinha-lhe contado que Inês de repente tinha desaparecido, deixando de o visitar. Ainda lhe ligou umas duas vezes para saber como ele estava, mas sempre sem o querer ver, achava ele.
“-No dia em que tu acordaste, liguei-lhe eu para lhe dar as boas novas. Pareceu-me ter ficado contente, mas limitou-se a pedir para eu te mandar um beijo da parte dela…”
O seu filho Miguel também comentou que achava que Inês não se tinha portado muito bem…
Incompreensível esta atitude para Pedro. Afinal de contas a Inês que tinha imaginado era bem diferente da Inês real. Para onde tinha ido aquela lealdade toda?
Esperou em vão por ela, ainda debilitado e a depender da ajuda de terceiros. Mas Inês não lhe veio dar amparo, não se interessou por ele. Quando ficou bom o suficiente para lhe ligar, ou mesmo ir ter com ela, Pedro interrogou-se:
“- Para que vou eu procurar uma pessoa que não me quis ver quando eu estava doente, nem quando saí do Hospital?”
Não era desta Inês que Pedro gostava… precisava de se desintoxicar dela, tinha mesmo que a esquecer!
O seu telemóvel tocou, olhou para o nome que lhe apareceu no ecrâ : “Rejeitar/Mafalda” e rejeitou mesmo a chamada. Hoje já era a terceira vez que o fazia.
Para ele, a Mafalda já pertencia a outro planeta! Já nem se dava ao trabalho de pensar nela. Ainda ficava com raiva quando pensava naquele momento em que tinha chegado à conclusão que tinha sido ela a tratar dele, no tempo em que esteve internado naquele último Hospital. O que tinha dado ao seu Pai para permitir uma coisa absurda dessas? A Mafalda, a tratar dele??? Coitado do seu velho Pai, tinha ficado muito incomodado quando Pedro lhe disse que devia ter impedido isso:
“-O Pai sabia perfeitamente que eu, se estivesse consciente, nunca iria permitir uma coisa dessas!”
Só o seu coração sabia quem ele queria que tivesse ficado sempre a seu lado, a cuidar dele, a esperar por ele… e o seu amigo Corisco também sabia esse segredo, como seu confidente que era:
“-Corisco, tenho sede e fome de ouvir e ver Inês, quando achas que esta loucura me vai passar? Tens alguma previsão? Diz lá, amigo…. Vamos voltar a estar juntos?”
E Corisco recomeçava a inclinar o focinho ora para a direita, ora para a esquerda..
“-Eu sabia que me ias responder que não sabias! Obrigado amigo!”
Tinha retomado o seu lugar na Feira de Artesanato. Era lá que estava hoje, com o seu fiel Corisco ao pé de si. Pedro fez-lhe festas no sítio onde ele mais gostava: por baixo do focinho e atrás das suas orelhas.
“-Corisco, bonito! Tu sabes bem ser fiel… esperaste por mim, não me abandonaste! Gostas disto, gostas? Pronto, pronto… quando chegarmos a casa dou-um biscoito, queres??”
Corisco, com orelhas levantadas tal qual duas antenas, latiu mal ouviu uma das suas palavras mágicas, biscoito!
Lá estava o homem dos espelhos esquisitos, mesmo à sua frente. Continuavam horrendos mas continuavam a serem vendidos, muitos! Que gosto esta gente tinha…
Para lá deles, já não via Inês. Agora a que era a sua antiga banca, estava ocupada por duas artesãs que trabalhavam num tear enorme. Havia tapetes e tapeçarias espalhadas pelo espaço todo. Como estaria Inês? Já não a via desde o dia do acidente, isso tinha sido já há mais de cinco meses. Pedro sabia que Inês estava em Goa, com a filha. Por mais que quisesse esquecê-la, havia sempre alguém que lhe vinha falar dela e contar as novidades. E Pedro ficava dividido entre nada querer saber e tudo querer ouvir, sobre Inês. E tudo registava, quando se tratava de Inês, era superior à sua necessidade de a esquecer.
Pedro tirou da sua carteira um papel dobrado várias vezes. Sorriu triste ao desdobrá-lo e olhou para ele. Era o registo do batimento do seu coração que uma médica lhe tinha oferecido, depois de ter feito um dos muito electro-cardiogramas que teve que fazer:
“-Pedro! Pedrooo! Estou farta de o chamar, mas você estava distraído, com um olhar tão triste e tão pensativo… não me ouvia, sequer! Tome lá esta cópia do registo do bater do seu coração e ofereça-a a quem for a dona dele…”
E Pedro lembrava-se muito bem em quem estava a pensar, nesse momento…
em Inês, na dona do seu pobre coração.
Mas não queria pensar mais nela. Que raio de sorte a dele: quem passava por um coma, como ele passou, normalmente perdia a memória mais recente.. a ele até lhe parecia que a sua memória tinha era ficado mais apurada!
Mas a vida continuava, inexoravelmente, e Pedro também tinha que continuar a sorrir, a trabalhar e a fingir que estava tudo excelente!
Era já de noite quando chegou a casa. E tinha à sua espera uma carta cujo remetente era o Governo da Catalunha….
(continua)