Pedro e Inês – oitava parte

Dia 24 de Dezembro, pela manhã.
Inês tinha recusado todos os convites recebidos para passar a noite de Natal em casa de amigos.
Desde que o seu filho Manel tinha morrido, era sempre um dia e uma noite muito triste. Manel delirava com o Natal e tudo o que lhe dizia respeito. Por isso, este não era dos seus dias preferidos… desde que a sua filha tinha ido viver para Goa, fazia questão de conseguir vir a Portugal passar estas festas. Mas este ano, com o nascimento dos gémeos, ainda demasiado pequenos para viajar, tinha atrasado a sua vinda para a altura da Páscoa.
Inês fez Rabanadas e Filhoses de Abóbora com ovos moles e canela.
Pré-assou uma perna de Perú com legumes da sua preferência: cebolas pequeninas, cabeças de alhos inteiros partidas na horizontal, abóbora, espargos, alhos-porros, cenouras, nabos, rabanetes e castanhas. Era uma receita da sua Avó, e era uma óptima receita. Preparou a sopa, que tinha por base um caldo de carne de Perú e era feita com castanhas, uma delícia! Fazia questão de, mesmo sozinha, manter a tradição.
Acabou de fazer tudo e ainda não era sequer meio-dia. Tinha planeado fazer umas visitas de tarde e também levar umas flores para o Jazigo onde estava o seu filho Manel, neste dia em que ficava sempre tão melancólica e quando as saudades a consumiam ainda mais. Passaria depois a noite tranquilamente em sua casa.
Inês sentia-se muito inquieta, mas sabia que sempre que voltava de “conversar” com o filho, vinha sempre mais calma e de coração serenado.
Estava pronta para sair quando alguém bateu à sua porta. Era Pedro! De novo aquele alvoroço interior todo… de novo aquela espécie de paralisia!
” – Olá Inês, podemos falar um bocado? Ou ias sair?”
” – Ia, mas posso ir mais tarde. É sobre o prémio que ganhaste?” E Inês, sentia Pedro nervoso, coisa que ele nunca fora.
“- Não… digamos que é mais sobre o prémio que perdi… ontem estive com a minha ex-mulher, a Mafalda. Acabei por perceber que te tinhas cruzado com ela no Hospital, segundo ela, quando me estavas a fazer a barba… Obriguei-a a contar tudo o que te tinha dito e o que tinha feito de seguida. Contrariamente ao que eu pensava, sei agora que só me deixaste de visitar porque foste proibida de o fazer. Inês, eu passei estes meses todos a pensar que tu não te importavas comigo, que nunca mais me quiseste ver. Magoava-me a tua indiferença e não percebia porque tinhas simplesmente desaparecido. Era como se tivesses decidido cortar de vez com a nossa amizade. Devo-te um pedido de desculpas e, se ainda sentires alguma das coisas boas que nos eram comuns, diz-me que não preciso de ficar com remorsos por estar aqui a fazer-te este pedido, dizes, Inês?”
“- Pedro, as coisas nunca são assim tão simples, pelo menos para mim. Disseste que ficaste magoado, e porque não conversaste comigo sobre isso? Não tínhamos nós uma ligação tão especial que nos dispensasse desses julgamentos sumários sem sequer conversarmos antes? Quando tive aquela estúpida conversa com a Mafalda e depois quando constatei que estava proibida de te visitar, percebi que a única coisa que podia fazer era esperar e confiar que, quando ficasses bom, viesses ter comigo e tudo ficasse esclarecido. Mas não foi isso que fizeste. No fundo, foi como tivesses decidido não confiar em mim. E essa decisão foi unilateral. Deixaste-me acreditar que já não te importavas comigo, que te era dispensável e indiferente. E isso fez-me sentir muito triste, rejeitada…
Lembrava-me frequentemente daquela nossa conversa em que declaramos nada querer mais do que uma boa amizade. Mas, pelo que aconteceu, nem sequer amizade era para ti, para ter sido assim posta de lado, sem apelo nem agravo. Estou cansada de esburacar tanto o meu coração, Pedro. Desculpa, mas já passei por tantos maus bocados na minha vida, imprevisíveis para mim, que pelo menos posso dispensar os que são previsíveis: mais tarde ou mais cedo apareceria outra coisa qualquer tipo Mafalda e voltaria tudo ao mesmo. Não quero que sintas remorsos de me teres pedido desculpa, nem precisas de o fazer. Mas como podemos ser amigos de novo quando se quebrou assim os nossos laços de confiança? Eu gosto de ser leal e gosto que me sejam leais. Não me parece que tenha acontecido isso connosco..”
“- Inês… fico triste que penses assim, mas será que é de apenas amizade que estamos agora a falar?”
“- Talvez não seja, mas seja lá o que isto for, teria sempre pés de barro, pois não foi fortalecido na amizade. Ambos tivemos experiências semelhantes e sabemos que o bom caminho não é esse…”
“- Inês, tu não foste semelhante a nada, na minha vida! Foste a melhor novidade e a melhor surpresa que eu alguma vez tive. E provavelmente vais ser a pior coisa que me não  acontecerá, daqui para a frente… ”
Pedro tirou do seu bolso um pedaço de papel dobrado e entregou-o a Inês, tristemente.
“- Toma, isto pertence-te. És a única e natural dona dele. Alguém o percebeu e me pediu que to entregasse.
Inês, um Santo Natal para ti!
Tenho e sei que ainda vou ter muitas mais saudades tuas…”
“- Adeus, Pedro…”

E Pedro foi-se embora, destroçado. Pensando bem, por mais que lhe custasse isso, era uma atitude que fazia sentido em Inês. Condizia com tudo o que Pedro sabia que ela pensava… Caramba! Até nisto ele admirava a sua coerência. Lealdade, tantas e tantas vezes tinham falado sobre isso! E foi assim triste e sozinho que Pedro voltou para casa. Só amanhã iria ter com Miguel e o seu Pai para passarem o dia de Natal juntos. Teria assim tempo para se recompor.
“- Eu sabia que já era tarde demais… Inês, Inês! Minha querida Inês! Que Deus me ajude a deixar de precisar tanto de ti!”

Ainda em sua casa, Inês desdobrou o papel que Pedro lhe tinha dado. Era o registo dos batimentos do seu coração. Era o resultado de um Electro-cardiograma!
Inês, olhando para aquelas riscas todas, chorou silenciosamente. “- Agora era tarde demais… porque me deixaste a pensar que já não te importavas comigo?”
E foi de coração muito apertado que Inês fez tudo o que tinha planeado fazer nesse dia. Voltou para casa ao final da tarde. O papel que Pedro lhe tinha dado ainda estava no seu bolso. Foram muitas as vezes que o desdobrou e o contemplou durante essa tarde… quase tinha sido apanhada em flagrante pela sua amiga Zézinha, mas conseguiu escondê-lo a tempo dos olhos inquisidores dela.
Voltou a desdobrá-lo e voltou a ficar como que hipnotizada a olhar para aquelas riscas todas que ora subiam ora desciam… era o bater do coração de Pedro.. Ele tinha-lhe dito que ela era a dona dele…

Pedro, sem vontade nenhuma de qualquer festejo, estava sentado no seu cadeirão com Corisco a seu lado. Ainda ia ter que fazer alguma coisa para jantar.
“- Então, meu amigo, que achas de tudo o que eu te contei? Também concordas que já era tarde demais? Mas como é que se fica a saber se é cedo ou se é tarde demais? Podes explicar-me o segredo, Corisco?”

Bateram à porta e Pedro, muito surpreendido, encontrou Inês a sorrir, quando a foi abrir.
“- Já jantaste?” – perguntou-lhe ela.
“- Não, ía agora preparar qualquer coisa… ”
” -Não precisas, trago aqui comigo o nosso jantar. E está uma delícia, prepara-te para umas excelentes receitas de Natal da minha família!”
E foi com alegria e cheio de esperança que Pedro ajudou Inês a trazer tudo para a cozinha. Parecia a sua Inês de antes do maldito acidente! Vinha alegre e vinha bonita. Corisco demorou um bom pedaço a acalmar e a parar de exigir a atenção da sua amiga.
“- Inês, estás bonita… estás bem disposta e estás aqui em minha casa: são estas três coisas que me estão a fazer feliz, agora… não sejas má comigo e diz-me logo o que isto quer dizer, dizes?”
Inês aproximou-se de Pedro, endireitou-lhe uma madeixa do seu cabelo que estava fora de sítio, e fez-lhe carinhosamente uma festa na cara.
“- Estás a precisar de fazer a barba, não gosto de barbas! Picam… Queres que eu ta faça? Já não seria a primeira vez, sabes? Então, conta-me lá isso de eu ser a dona do teu coração…”
“- Já há muito que o és, minha querida Inês. És a Dona e Senhora de mim, e do meu destino, por inteiro…” disse Pedro, enquanto a abraçava.
Inês encostou-se ainda mais a Pedro.
“- As saudades que eu tive tuas! Exclamou Inês -Não imaginas o que eu esperei por ti, o tanto que eu queria que um momento destes chegasse para nós.. Hoje, depois de teres ido embora de minha casa, não consegui deixar de pensar no que te disse. E cheguei à conclusão que não foste só tu a não confiar. Também eu não confiei em ti ao não te ter ido procurar para falarmos e esclarecermos tudo, depois que ficaste bom. Fui muito injusta contigo e demasiado benevolente comigo. Desde o acidente que percebi que te amava, Pedro. E foi a partir desse momento, sem saber o que sentias verdadeiramente por mim, que todos os dias eu pedia a Nossa Senhora para, se Ela achasse que nos merecíamos, não deixasse que os nossos corações se esquecessem um do outro. E foi isso que eu descobri hoje durante a tarde: Nossa Senhora acha que eu te mereço e que tu me mereces, porque não nos deixou esquecer!”
-” Inês, minha Inês, eu adoro-te, sabias?”
“- Não, não sabia! Mas podes explicar-me melhor isso e também a história de ser a dona do teu coração? Não a percebi muito bem ainda…”
-” Eu explico-te tudo, se me fizeres agora a barba. Afinal de contas ainda não sei se a fazes bem, nunca estive de olhos abertos para o confirmar …”
“- Então vamos lá despachar isso: depois jantamos e vamos à Missa do Galo, queres?”
“- Quero isso tudo e muito mais, minha doce e bonita Inês!”

E foi assim que não se desperdiçaram dois corações com capacidade ainda para muito se amarem, para serem um casal em pleno, cheio de cumplicidade, lealdade, alegria e espírito de humor, capazes de fazerem felizes as pessoas à sua volta. Tal como Inês tinha pedido, nas suas orações…

Fim

Publicado por cristina sottomayor

Tudo o que eu escrevo aqui é um misto de vivências minhas e pura ficção. Mas mesmo na ficção, não consigo deixar de ser inspirada por momentos bons ou maus que vivi ou vi acontecerem à minha volta.

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