António quis certificar-se, mais uma vez, que as duas seriam discretas. Não lhe convinha nada que se começasse a falar na vida dupla que tinha levado até agora. O seu Tio, ainda ignorava o namoro dele com Mariazinha e era imperativo que continuasse nessa ignorância. Logo na manhã seguinte dirigiu-se a casa da Mariazinha. Falaria com ela de novo, tinha que controlar os seus queixumes e lamuriações. Tinha a certeza que mais cedo ou mais tarde ela iria outra vez confiar nele. Já sentia saudades da simplicidade dela, sem amuos, exigências ou queixumes. António via na Mariazinha um brinquedo, uma boa maneira de fazer passar o tempo de espera para a sua sogra morrer. E o raio da velha que vivia ainda cheia de saúde! Tão desconfiada que ela era com ele… Não via a hora de deitar a mão à herança! Aí sim, teria o que sempre mereceu ter: dinheiro e propriedades para viver sem preocupações impróprias para o seu ego. Já tinha há muito tempo planeado fazer uma viagem pelo mundo fora. Mas como gostava de se sentir rodeado de luxos e mais valias, teria que esperar ter nas suas mãos a fortuna que sua mulher ia herdar. Tinha que morrer, a velha!
Aproximando-se da casa que procurava, achou estranho as portadas todas cerradas e em cada um dos vidros das janelas tinha agora os habituais papeizinhos brancos em sinal de que a casa estava para alugar.
António bateu à porta, mas ninguém respondeu. Encostou o ouvido à madeira e nada ouviu para além do silêncio. Contornou a casa e saltou o muro do jardim. Conseguiu assim espreitar para dentro pela janela da sala e da cozinha que não tinham portadas. A casa estava vazia, de pessoas e com poucos móveis! Olhou em redor e reparou então que o jardim estava todo arrumado e o galinheiro não tinha nenhuma das galinhas que sempre teve.
Elas fugiram! Mas como foi possível fazerem-no apenas numa noite? António, sempre tão seguro de si próprio habitualmente, sentiu-se desorientado e sem saber o que pensar. Tinha que analisar bem o assunto: isso era bom ou era mau para ele? Não lhe agradava nada perder de vista as únicas pessoas que sabiam mais do que ele desejava da sua vida. Era um risco para ele elas andarem por aí à solta… Pelo menos o assunto do bebé tinha sido arrumado…
Mas para onde terão ido elas? António esforçava-se por se lembrar de alguma coisa que Mariazinha lhe tivesse contado sobre familiares e onde eles poderiam viver. Mas não se lembrava de nada. Também nunca ouvia com atenção o que ela lhe contava. Tudo era de muito pobre. Limitava-se a sorrir e a fingir que estava a ouvir tudo o que ela lhe contava. E o seu Tio? Será que elas foram falar com ele? Eram quase horas do almoço, o seu Tio almoçava religiosamente às 11 da manhã. Faltava pouco para ficar a saber se elas lhe tinham contado alguma coisa ou dito para onde iam.
Mas António ficou a saber o que já sabia: nada. Ninguém parecia saber o que lhes tinha acontecido. Todo o bairro estava espantado e não percebiam o que se tinha passado com elas. Era como que se se tivessem evaporado de repente.
António, durante umas duas semanas ainda rondou a casa, para ver se conseguia apanhar alguma novidade, mas nada se passou. Toda a gente pensava que era a sua paixão e as saudades por Mariazinha que guiava os seus passos em direcção à casa dela…
Passados uns meses a casa foi arrendada a uma família com dois filhos. Pagavam a renda a um Procurador. Ninguém sabia quem era o Senhorio. Ninguém sabia que a verdadeira dona daquela casa era a Tia da Mariazinha que tinha dado instruções expressas para não divulgar o nome do proprietário muito menos o seu actual paradeiro.
António ainda fez algumas tentativas para as encontrar. Chegou mesmo a contratar um homem “Especialista em Assuntos Delicados”, mas nada conseguiu saber do paradeiro delas. Acabou por desistir e voltou para Vila Real.
Os anos passaram e António desesperava à espera que a sogra morresse. Ela já contava mais de setenta anos e ainda estava muito activa, física e mentalmente. Continuava a gerir as suas propriedades com pulso de ferro e não permitia que António se chegasse sequer ao seu escritório. Não tinha a mais pequena das confianças no genro. Conhecia-lhe o mau carácter e só tinha pena de não se ter apercebido disso antes do casamento da filha com aquele tratante. Sabia que ele estava à espreita e a torcer pela sua morte, mas, se DNSenhor quisesse, ainda tinha uns poucos de anos para viver e assim estragar-lhe os planos.
António e Luísa tiveram mais uma filha, que recebeu o nome da sua Avó, Branca. Passou a ser tratada por Branquinha. Fazia uma diferença de seis anos de seu irmão mais velho, o Luís. Ao contrário deste, que sempre foi tímido e tristonho, Branquinha era muito alegre e extrovertida. Desde muito cedo aprendeu que quanto mais sorrisse mais conseguia o que queria. Era bonita e inteligente. Cresceram os dois irmãos no seio de uma família sem figura paterna, pois seu Pai estava quase sempre ausente, ou em viagem ou em estadias prolongadas por outras bandas. Nunca ninguém parecia saber muito sobre isso. E também nunca ninguém parecia importar-se… nem a Mãe nem a Avó o faziam. E até se lhes notavam um grande alívio quando ele desaparecia de novo por tempo indeterminado.
Passaram-se dezoito anos até que numa manhã de Abril, corria a Primavera em pleno por aquela terra dentro, a Senhora D. Branca não desceu à hora habitual para tomar o seu Pequeno-almoço na salinha pequena. Foram ver o que se passava e encontraram-na já cadáver ainda metida dentro da roupa de cama. O sopro da morte apanhou-a em pleno sono, estava com um semblante sereno e descansado. Sua filha, seus netos e toda a criadagem sofreram com a sua partida. Tudo se arranjou para que o seu funeral fosse o mais bonito dos funerais. A Missa de corpo presente foi dita na Capela da Casa Grande, onde ela tinha sido Baptizada, Crismada, Casada, e agora enterrada.
António mal conseguia disfarçar a sua satisfação.
Esforçava-se por apresentar um semblante tristonho mas de pouco ou nada lhe valia: já eram sobejamente conhecidas as suas intenções e o seu mau carácter. Na região, poucas pessoas se deixavam ainda enganar por ele.
Passaram uma quinzena de dias e António impacientava-se com a demora da leitura do testamento. Tentou apressar tudo junto do Notário, mas este disse-lhe que tinha instruções expressas para cumprir e uma delas era que passassem seis meses depois da morte da Senhora Dona Branca para se proceder à leitura do seu testamento.
Quando esse dia finalmente chegou, reuniram-se todos no escritório da quinta e esperaram pela leitura.
E houve surpresas. A testamentária tinha investido quase toda a totalidade do seu capital em mais terras que anexou às suas quintas. Os seus dois netos, Luís e Branca, herdavam todas as propriedades. O usufruto da quinta onde viviam, e de apenas essa, era, até à sua morte, da sua filha única, Luísa. Foi a maneira que encontrou para proteger a sua fortuna das mãos do seu ganancioso genro. O pouco dinheiro em efectivo que sobrou ficava dividido em partes iguais por cada um dos netos e filha. Era o suficiente para a sua sobrevivência sem preocupações por um ou dois anos. Para terem mais capital disponível, os netos, teriam que bem administrar as suas propriedades e arrecadarem o lucro delas proveniente, que era sempre muito. Enquanto não o faziam, tinham um Procurador que administraria as propriedades, seguindo as instruções da falecida Senhora D. Branca, que obrigava esse Procurador a investir todos os lucros das propriedades na aquisição de novas terras e maquinaria agrícola. Nenhum dinheiro poderia ser retirado das propriedades enquanto estivessem a ser administradas pelo dito Procurador. Seria dispensado dos seus serviços quando um ou os dois netos decidissem administrar o que lhes tinha sido dado por herança. Nada podia ser vendido antes de ser completado o período de vinte anos que o interditava. Se fosse quebrada essa condição, pelos dois ou apenas por um dos herdeiros ficaria anulada a herança e tudo passaria para as mãos da Santa Casa da Misericórdia de Lamego.
António espumava de raiva depois de se aperceber que sua mulher nada iria receber de propriedades que se pudessem vender para ter dinheiro líquido que ele pudesse usar em seu proveito. A maldita da sua sogra, para além de o fazer penar à espera que morresse, ainda lhe pregava uma partida destas! Por mais que pensasse, nada havia a fazer. Até podia manipular o seu filho, mais permeável à sua autoridade do que Branquinha. Tinha-lhe medo e António a certeza que ele faria o que o Pai lhe mandasse. Mas de nada lhe valia… o que António queria era dinheiro rápido e para o ter teria que vender terras e realizar dinheiro. E isso não era possível antes do tal período de vinte anos senão, toda a herança se perdia. Tinha que contar também com a sua filha, que não iria deixar nunca que seu irmão se desfizesse das suas propriedades, pondo em risco as suas também.
Por essa altura Luís tinha 26 anos e sua irmã Branquinha 19 anos. Luís tinha estudado Agricultura e estava apto a gerir as suas propriedades, mas iria aproveitar os próximos dois anos para fazer o que mais ele apreciava, que era pintar, sobretudo aguarelas, ou desenhos a sépia com alguns detalhes coloridos, isolando-se durante horas em plena natureza. Gostava muito de animais sendo por isso o que mais imortalizava nas suas telas. Tinha a destreza e a paciência natural para descobrir espécies raras e pouco conhecidas, desenhando-as e pintando-as para memória futura. Fazer isso em Trás-dos-montes era ter um manancial de animais raros à sua disposição, a variedade era imensa e muito diversificada. Correspondia-se com alguns Ornitólogos interessados nos seus desenhos e descrições meticulosas. Apreciando uma vida pacata e simples, Luís era tímido e inseguro quando em sociedade. Preferia a vida do campo e tudo o que vinha junto com ela. Sua Avó, conhecendo-o tão bem, não podia ter feito melhor escolha para ele, principalmente ao protege-lo da nefasta influência e cobiça de António pois sabia bem que Luís não conseguiria nunca fazer frente ao Pai.
Branquinha já era muito diferente. Contrariamente ao seu irmão, era destemida e sabia bem o que queria. Não ignorava que seu Pai não prestava e decidiu que isso não a iria afectar nunca, como afectou a vida de sua Mãe e de seu irmão. Era bonita, bem proporcionada, e capaz de brilhar em qualquer sociedade. Branquinha vestia-se bem embora com simplicidade e era-lhe inata a elegância em tudo o que dizia e fazia. Era parecida com a sua Avó Branca, especialmente no seu jeito para os negócios. Não perdeu tempo e começou desde logo a gerir as suas propriedades. Fez planos e estipulou objectivos para expandir as suas terras. Sem nunca ter estudado para isso, era uma mulher de bons negócios. Tinha como interesse os cavalos. Começou a pensar em reproduzi-los numa das suas quintas que era a ideal para isso. A raça Lusitana era a sua preferida. Montava já há mais de um ano uma égua Lusitana, presente da sua Avó quando tinha feito 18 anos. Chamava-se Flecha. Branquinha cantava, pintava e bordava. Tinha sido educada para isso e tinha gosto e queda para tudo o que lhe ensinaram. De pulso firme para a organização doméstica, todos os criados a admiravam e respeitavam. A mínima ordem dada por ela era prontamente obedecida e executada com esmero. Branquinha era como a sua Avó: sabia bem mandar, uma qualidade que poucas pessoas possuem. Sem castigos, ameaças ou represálias os seus subordinados eram-lhes fieis e cumpridores das suas ordens porque as reconheciam justas e inteligentes.
Luísa, ainda a viver intensa e dolorosamente o luto pela morte de sua Mãe, era a única que sabia de antemão como a fortuna ía ser distribuída. Foi ela própria que descansou a Mãe ao dizer-lhe que não podia ter feito melhor, pois da maneira como tudo foi planeado, António não podia deitar a mão a nada. Luísa e sua Mãe sabiam que nunca lhe faltaria nada. Mesmo que o tratante do marido lhe subtraísse o pouco dinheiro que lhe calharia, tinha o apoio incondicional dos seus filhos, ao contrário de António que nunca teve qualquer amor ou cumplicidade com Luís e Branquinha. São facturas que acabam sempre por aparecer, normalmente no final da vida de pessoas más e egoístas que nunca pensam em armazenar afectos e carinhos nos seus tempos áureos da vida. Mas António, como um exímio egoísta que era, seguia a sua vida mesquinha e inconsequente. De tempos a tempos tinha uma amante, uma desgraçada que ele apanhava na sua teia e que a sacudia de qualquer maneira ou quando se fartava ou então quando conhecia outra. Jogava e, últimamente, eram já poucos os dias em que se encontrava sóbrio. O vício do jogo trazia-lhe muitos problemas e o do álcool em nada o ajudava. Fazia dívidas a torto e a direito em salas clandestinas de jogos de azar, principalmente nas que ficavam para lá da fronteira, em terras espanholas. Era lá que passava das marcas ao dizer que era herdeiro de uma grande fortuna e assim ainda ía enganando quem lhe emprestasse dinheiro… António continuava a ser muito bom a manipular pessoas, principalmente aquelas que não o conheciam. Sabia ser charmoso e atencioso quando queria alguma coisa.
(Continua)