Naquela espécie de nevoeiro mental do qual emergimos, lentamente, quando acordamos – pelo menos eu acordo sempre assim – nâo sabia onde estava? Que dia era? Quem estava a fazer aquele barulho todo? Mas os meus pensamentos organizaram-se e rapidamente me lembrei que era o meu último dia a caminhar para Santiago! Só faltavam mesmo uns 27 quilômetros… Meu Deus! O último dia! Impressionante como a constatação de que o nosso objectivo está quase a ser conseguido nos dá ânimo, alento e força de vontade extra…
Saí do Convento do Carmo, um mosteiro medieval onde estava instalado o Albergue e atravessei a ponte bonita para o outro lado da vila. Ainda não era dia por completo. Em cima do rio pairava uma neblina gélida, a fazer-nos lembrar a importância do calor do sol. E lá estava o ganso solitário que, no dia anterior, se fartou de grasnar a pedir pão ao Sr. Manolo, o dono do Quiosque mesmo ao lado da ponte. Estava mais sossegado, hoje… O ganso e o Sr. Manolo, segundo este me disse, já são bons amigos há mais de seis anos, fartam-se de discutir de uma margem para a outra. O ganso acha que o Sr. Manolo se esquece de lhe dar comida e o Sr. Manolo acusa o ganso de ser muito comilão e resmungão. Na verdade, não me lembro de ver um ganso tão grande… deve fazer o que quer do Sr. Manolo…
Padron é muito bonito. Respira-se antiguidade, História e lendas. Fácilmente nos transportamos à Idade Média ao sentirmos e observarmos a pequena cidade, na sua parte antiga.. Ainda à espera pela hora combinada com a Marybel, a Porto-riquenha, encontrei o Andreas e tomamos o café matinal juntos. Visitamos a Igreja, muito bonita, onde está exposta uma pequena coluna em pedra que já fez parte de um dos cais do porto em Padron. Dizem ter sido onde as amarras do barco que transportou o corpo de Santiago ficaram presas. Foi também nessa Igreja que vi uma imagem de Jesus – em tamanho real, já adulto, montado num burro. Representava a Sua entrada em Jerusalem e tinha uma expressão de dor e ao mesmo tempo de aceitação, pois os seus braços estavam abertos e o peito atirado para a frente como se estivesse pronto a receber voluntariamente todo o sofrimento das sevícias horríveis que já sabia que Lhe íam fazer… até o burrico tinha uma expressão peculiar, parecia aterrado. Nunca tinha visto.
O Andreas é Protestante, mas, em conversa, ambos concordamos que as diferenças entre as nossas religiões são insignificantes para a nossa fé em Deus e, principalmente, criadas pelo homem, esse ser tão imperfeito que nós somos.
Nesse último dia, frequentemente me vinha ao pensamento frases que começavam por: “nunca mais isto…; nunca mais aquilo…; vai ser a última vez que…; jamais verei isto…; não vou mais ver este e aquele…” E um friozinho na barriga a confirmar essa nostalgia por antecipação, ía e vinha ao longo desse dia.
A manhã manteve-se muito fria. As primeiras horas fizeram-se caminhando por pequenas aldeias e povoações. Alternavam-se com campos abertos e prados onde alguns animais pastavam daquela erva de cor “verde novo” e ainda a gotejar orvalho. Conhecemos a D.Branca, orgulhosa dona de uma cabra de pêlo comprido preto e branco. Também a D. Branca trazia vestida uma grande camisola de lã, nas cores preta e branca. Trazia a cabra presa numa trela (igual à dos cães) e, apanhando punhados de erva da beira do caminho, tentava que ela a comesse, murmurando palavras carinhosas e de incentivo. Tristemente, a D. Branca contou-nos que a cabrinha tinha dado à luz dois cabritos mas que ambos tinham morrido pouco depois de nascerem. Ainda estavam as duas tristes, disse-nos ela… Só se abriu num sorriso quando pedi para lhe tirar uma fotografia, compondo uma madeixa do seu cabelo que estava eventualmente fora do sítio e endireitou as franjas do pescoço da sua cabra.
Pela tarde enveredamos de novo por aqueles bosques de que eu tanto gosto. Cada um que conheço me parece ainda mais bonito e mais bem cheiroso que o anterior. Tenho medo que me achem cansativa por estar sempre a repetir-me, mas caminhar pelo meio de tanta beleza e em plena natureza, faz-me tão bem! O saco onde guardo todos os “tesouros” que vou encontrando e que sejam transportáveis, já vai quase cheio.
Trago penduradas na minha mochila três grinaldas que fiz em vime, apanhado pelo caminho. Estão destinadas à decoração de Natal, no Porto.
Algures durante a tarde, em plena floresta, abandonei as minhas duas últimas pedras, as pretas.
Falar Inglês, Francês e Espanhol no meio de tantas nacionalidades, fez com que estivesse sempre a ser solicitada para fazer traduções. Até dá para brincar. Uma vez pediram-me para traduzir uma placa daquelas aborrecidas que dizem qualquer coisa parecida com: “PROJECTO FINANCIADO PELA UE NO ÂMBITO DE… COM UMA EXTENSÃO DE… COM O VALOR DE …. PARA MELHORIA DO CAMINHO PORTUGUÊS DE SANTIAGO… ETC.,ETC..”
Traduzi em modo “Monopólio”:
“VOLTE PARA TRÁS CINCO
QUILÓMETROS. ESTÁ NO CAMINHO ERRADO. DEIXE PASSAR OS OUTROS À SUA FRENTE E DÊ TODO O SEU DINHEIRO A QUEM ESTÁ À SUA DIREITA. VÁ PARA A PRISÃO DURANTE DUAS HORAS.”
Foi impagável a expressão, mesmo que por breves instantes, dos Alemães! Acho que o que os baralhou foi aquilo da prisão… Desatamo-nos todos a rir, em seguida.
A corajosa Marybel continuava a caminhar com muitas dores num pé. Tivemos que abrandar ainda mais o ritmo e fazer mais paragens. E eu continuava a agradecer nada me doer…. a tarde já ía adiantada, e já se percebia que não íamos conseguir chegar ainda de dia. Como sempre, os últimos quilómetros foram os mais custosos. Mesmo antes de chegarmos a Santiago enganamo-nos ao falhar um desvio e, de repente, ficamos quase encurraladas numa via rápida ou autoestrada. Tivemos de fazer o que eu imagino ser o mais penoso para um peregrino: voltar para trás!
Mas acabamos por chegar, sã e salvas a Santiago. Já era muito noite, estavamos muito cansadas e por isso mesmo decidimos só ir à Catedral na manhã do dia seguinte.
Depois de fazer o Check-in no hotel onde tinha uma reserva, já no quarto, fiquei emocionada ao avistar, através dos vidros da janela a imponente Catedral toda iluminada. Já a tinha visto muitas vezes, mas nunca iluminada! Que poderosa me pareceu… uma beleza! Confesso-vos que foi nesse momento que me emocionei… Tentei, sem conseguir, abrir a janela. Tirei uma fotografia mesmo através dos vidros. Fica aqui publicada.
Aumentou ainda a sensação de que tudo estava a acabar. A pena de já não continuar no dia seguinte crescia dentro de mim. Tudo parecia ter passado tão rápido! Demasiado rápido…
Deitei-me a pensar em algumas pessoas com quem me cruzei no caminho e que nunca mais vi. Faltou-nos a despedida, antes do desencontro. Mas na altura não o sabíamos. Será que amanhã ainda ía encontrar algumas delas, em Santiago?
Até amanhã…